TRAÇADO A DIREITO
exposição no Tribunal de Lamego
de 29 de abril a 11 de julho de 2025
Entre a Arquitetura e os valores do Estado Novo
Os arquitetos portugueses, nas décadas de 1920 e 1930, começaram a assimilar as influências do Movimento Moderno Europeu. Contudo, com a consolidação do Estado Novo, a arquitetura pública passa a refletir os valores nacionalistas e tradicionalistas do regime. A criação do Secretariado de Propaganda Nacional, em 1933, institucionalizou uma estética marcada pelo historicismo e monumentalidade influenciada pelo modelo da “Casa Portuguesa” de Raul Lino, afastando-se das tendências vanguardistas.
A partir dos anos 50, o regime investe estrategicamente no património judicial como forma de propaganda política. Sob tutela dos ministros Cavaleiro Ferreira e Antunes Varela, os novos Palácios da Justiça tornam-se símbolos da autoridade do Estado. Edifícios imponentes, austeros e organizados segundo uma hierarquia espacial bem definida, refletindo a estrutura social e o poder instituído.
Januário Godinho: Arquitetura entre a Tradição e a Vanguarda
O arquiteto Januário Godinho (1910–1990) é o responsável pela conceção do Palácio da Justiça de Lamego. Autor de dez dos oitenta e nove Palácios da Justiça construídos entre 1950 e 1970, Januário Godinho é conhecido pela sua capacidade de conciliar as exigências formais do regime com uma linguagem própria, ora tradicionalista, ora inovadora.
O próprio Godinho definia a sua produção em obras de “mão direita” (livres e inovadoras) e obras de “mão esquerda” (convencionais e retóricas). Os edifícios judiciais, devido às suas restrições ideológicas, integram-se maioritariamente nesta última categoria. Ainda assim, Godinho introduz discretamente soluções pessoais e refinadas, distinguindo-se dos seus contemporâneos.
A Construção do Palácio da Justiça de Lamego
Já em 1956 se previa, no anteplano urbanístico de Lamego, a construção do novo Tribunal na atual implantação. Porém, a escolha revelou-se complexa, implicando alterações à zona non eadificandi da Sé de Lamego, assim como ao traçado ferroviário planeado pela Direção Geral de Transportes Terrestres para a linha Régua – Lamego. A construção do edifício só em dezembro de 1960 teria o seu início.
O Tribunal de Lamego: monumentalidade simbólica e contenção formal
No projeto do Tribunal de Lamego, Januário Godinho demonstra uma atenção cuidada ao contexto urbano e arquitetónico envolvente. Consciente da proximidade de edifícios como o da Sé, do Museu de Lamego ou o do antigo Seminário (atual Messe dos Oficiais), propõe um volume neoclássico de grande escala, sóbrio e imponente, a encerrar uma antiga praça ajardinada. Assente numa plataforma elevada, acessível por escadaria, o edifício distancia-se fisicamente do espaço público, reforçando a separação entre sociedade civil e esfera da Justiça. A fachada, marcada por colunas verticais e esguias que atravessam dois pisos, transmite austeridade e solenidade. O uso do granito azul local contribui para a força visual do conjunto, enquanto o telhado inclinado e o beiral recuado evocam uma linguagem de arquitetura fortificada. A antiga casa do guarda dava acesso a esse “caminho de ronda”, reforçando a ideia de vigilância e resistência. Ao contrário dos edifícios vizinhos, de traça tardo-barroca, o Tribunal afirma a sua monumentalidade através da contenção simbólica. A ausência de ornamentos e a sobriedade formal traduzem os ideais do Estado Novo: autoridade, ordem e disciplina.
Arquitetura, Mobiliário e Simbologia do Poder
O mobiliário do Tribunal de Lamego, desenhado igualmente por Januário Godinho, reflete a hierarquização social e profissional imposta pelo regime. As peças, de linhas austeras e funcionais, estão organizadas e padronizadas segundo funções e patentes. Destaca-se o mobiliário dos magistrados, especialmente a mesa de audiências, elevada sobre um estrado que impõe dignidade, e a cadeira central do juiz, posicionada diante da representação de D. Afonso Henriques, na tapeçaria figurando as míticas Cortes de Lamego (Jaime Martins Barata, 1964), que simbolicamente lhe delega a autoridade judicial e o poder do Estado.
O Grande Dia: Inauguração em 1965
A inauguração oficial do Palácio da Justiça deu-se a 29 de abril de 1965, integrada na visita do Presidente da República Américo Tomás ao distrito de Viseu. A cidade engalanou-se com entusiasmo popular, colchas nas janelas de onde voavam papelinhos, bandas filarmónicas, foguetes e discursos solenes. Após o banquete no Museu de Lamego, o edifício foi finalmente inaugurado, numa cerimónia com pompa e circunstância, com a presença de figuras cimeiras do regime.
Um Legado com 60 Anos
Seis décadas depois, o Palácio da Justiça de Lamego permanece como um marco arquitetónico da cidade. Representa não apenas o poder judicial, mas também uma época da história portuguesa onde arquitetura e ideologia caminhavam lado a lado. Esta exposição convida à redescoberta deste edifício emblemático e da sua narrativa única, onde pedra, espaço e símbolo se cruzam para dar forma à Justiça.
Ricardo Braga
Mais informação sobre a exposição Traçado a Direito AQUI.

A exposição pode ser visitada, gratuitamente, no Tribunal de Lamgego, de segunda a domingo, das 9hoo às 12h30 e das 14h00 às 16h00.
ficha técnica
Organização
Museu de Lamego
Tribunal Judicial da Comarca de Viseu
Curadoria
Ricardo Braga
Comunicação e design gráfico
Paula Pinto
Produção e montagem
Museu de Lamego
Tribunal de Lamego
Labfoto Lamego
Meritocil Lda, Lamego
Apoios
Liga dos Amigos do Museu de Lamego
Município de Lamego
Coleções
António Manuel Alves da Silva
Arquivo Câmara Municipal de Lamego
Arquivo – Museu Diocesano de Lamego
Arquivo de Museu da Presidência da República
Arquivo da RTP
Centro de Documentação da Faculdade de Arquitetura do Porto
Inês Afonso Lopes
João Rebelo
SIPA | Sistema de Informação para o Património Arquitetónico
Agradecimentos
Catarina Ribeiro
Filipe Pereira, Pe.
Wilson Teixeira