Faz parte da doação António Metelo Seixas (2013) este óleo sobre tela que se partilha em maio, mês em que a natureza explode num hino à vida e se celebra a mulher mãe.
Menina, Mulher, Mãe… essência do espaço doméstico, força de resistência, de dignidade e de esperança. Tema aqui tratado sem qualquer busca do efeito especial, mas sim numa narrativa de uma autenticidade e de uma sinceridade que emocionam. Sobre o fundo neutro que serve de chão aos pés descalços, poisam firmes como raízes. Esteios dos corpos que se unem, se apoiam e se erguem, numa verticalidade que o traje reforça. Testemunho da sua condição, exposta e assumida com a dignidade dos que resistem. O xaile vermelho que envolve os ombros da mulher e lhe cai sobre as vestes negras, retêm-nos no gesto desafiante do braço fletido sobre a cintura. Os subtis jogos de claro/escuro criam uma atmosfera envolvente e íntima que lhe desvenda os rostos, e nos conduzem ao vestido da rapariga, onde a luz reverbera e nos impele para as mãos de ambas, que se entrelaçam e unem. Definem uma diagonal que nos remete para o olhar. Que nos interpelam, questionam, inquietam…
Abandonadas é uma obra de mestre Joaquim Lopes (1886-1956), artista, pedagogo, escritor e crítico. Um percurso onde a arte ocupou o centro da sua vida e a obra “conserva, sempre, um sentido humano, coerente com a sua formação enquanto pintor e com a sua moral enquanto homem”. (Santos, 2012, 25). Hélia Guedes, neta do pintor, fala-nos do homem que foi seu avô: “muito humano, com carácter, íntegro, caridoso e sério trabalhador”[1] O pintor Justino Alves testemunha sobre o autor e obra: “de um naturalismo mitigado, assume a realidade da época que transmite para as suas telas, […] uma visão pessoal do meio em que viveu e lhe serviu de tema. […] A paleta de enormes recursos, o primado da cor evidencia-se como elemento incontornável e fonte inspiradora de todo o processo pictórico; a esta substância cromática, […] junta-se um dos seus mais poderosos atributos, a sua enorme capacidade de explorar as virtualidades do claro/escuro, da nuance e da tonalidade, construindo hierarquias de grande luminosidade e forte impacto visual.”[2]
Joaquim Lopes nasceu em Vilar do Paraíso, concelho de Gaia, numa família[3] de prol numerosa e parcos recursos, mas onde abundava o espírito artístico. Foi ao lado dos avós paternos, Ana Simões e Francisco Lopes que cresceu. A avó providenciou-lhe aulas particulares e ofereceu-lhe o violão, aos 7 anos. Do avô herdou o estojo de pintura e, após a sua morte, quando as dificuldades financeiras obrigaram à busca de alternativas, é o tio materno, José Pinto, que o leva consigo para a Casa Tomaz Cardoso. Atribuem-lhe a tarefa de pintar e decorar cofres. “Na oficina pinta ornatos, flores, paisagens e emblemas, que agradam ao seu tio, homem que gostava dos artistas e tudo o que à Arte dissesse respeito. Foi ele quem muito se empenhou para que Joaquim fosse para a Academia de Belas Artes” (Fauvrelle, 2009, 10). O gosto do tio ecoava no jovem que com entusiasmo, não se poupa a esforços, conciliando o trabalho com a “frequência do Curso Nocturno de Pintor Cerâmico na Escola de Desenho Industrial Passos Manuel (EDIPM). Aí, tem formação em Desenho, Pintura e Modelação. (Santos, 2012, 37). Aprendizagem que lhe permite realizar vários trabalhos de decoração, quer em baixelas, quer em painéis de azulejos para várias fábricas como a do Agueiro ou a do Cavaco. Atividade que será recorrente no seu percurso. Como os painéis de azulejos, que realiza em 1931, para a Praça do Rossio, em Viseu, e os que faz para o Hospital de Santo António, no Porto. Em 1906, ingressa no curso de Desenho Histórico na Escola de Belas Artes do Porto, onde permanece até 1915, data em que conclui o curso de Pintura. Este período na Academia proporcionou-lhe o conhecimento e a amizade dos mestres José de Brito (1855- 1946) e Marques de Oliveira (1853-1927), por quem nutria grande estima e muitas influências deixam na sua obra; de Diogo de Macedo (1889-1959), com que fez a primeira exposição (1913); Soares Lopes (1888-1921), com quem ganhou uma Bolsa de estudo para pintar o Gerês (1914)[4], ou Heitor Cramez (1889-1967), seu colega na docência.
“Até 1915, as aparições públicas de Joaquim Lopes dividem-se entre a sua presença em mostras de arte e a sua participação em algumas publicações” (Santos, 2012, 55). Em 1916, participa na exposição Os Phantasistas e, em 1917, no 1º Grande Certame de Arte.
Depois de concluir a formação “continuou a trabalhar na serralharia, pintando caixas e cofres, e a fazer exposições, sobretudo na Sociedade Nacional de Belas Artes, onde as suas obras tinham grande aceitação” (Garradas, 2009, 38), o que lhe permitia assegurar as despesas quotidianas e a viagem a Paris (1919), onde frequentou a Academia La Grande Chaumiére. Com objetivos bem definidos, Joaquim Lopes absorve toda a atmosfera artística parisiense. “Visita os museus e as exposições, tomando contacto com a obra dos mestres dos séculos XVII e XVIII e com os impressionistas, sendo particularmente marcado pelo tratamento da luz destes últimos. Tem igualmente a possibilidade de conhecer outras correntes estéticas modernas“ (Fauvrelle, 2009, 15). Sensibilizam-se Eugène Delacroix (1798-1863), Pierre Puvis de Chavannes (1824-1898), Auguste Rodin (1840-1917), Eugène Carrière (1849-1906), Jacques Émile Blanche (1861-1942) Maurice Denis (1870-1943), e, na literatura, Émile Zola (1840-1902).
Nesse mesmo ano, enceta a carreira docente no ensino técnico[5] passando em 1930 para a Escola Superior de Belas Artes[6], onde assumiu a Direção (1948-1952), após a saída de Aarão de Lacerda (1890-1947). De salientar o seu desempenho como pedagogo e como diretor, lutando pela atualização dos currículos, pela melhoria das instalações e pela preservação do espólio artístico da instituição “defendendo a necessidade de um Museu, única maneira de expor à admiração do público os quadros e esculturas guardados no sótão da Escola”[7] ( Joaquim Lopes Apud Garradas, 2009, 43). Esta preocupação expressa-se para lá da escola, nos estímulos e contributos que prestou a vários museus, como o Museu do Abade de Baçal (Bragança), Museu Grão Vasco ou Museu José Malhoa, angariando obras, realizando de palestras, “pensando que a educação da população e o seu contacto com a arte teriam reflexos na própria vivência – na casa, na aparência, nos hábitos” (Fauvrelle, 2009, 27).
Em 1934, com uma Bolsa da Junta de Educação Nacional viaja a Espanha (onde ia com frequência), Itália, França, Bélgica e Países Baixos, com o propósito de “estudar os Primitivos […] de modo a verificar prováveis analogias que eram apontadas para alguns dos mestres portugueses, como Nuno Gonçalves e Grão Vasco” (Joaquim Lopes apud Fauvrelle, 2009, 19-20).
Esteve sempre ao lado dos colegas e dos alunos, promovendo a sua formação e o seu trabalho na escola e fora dela, em exposições, conferências, escrevendo, publicando…In Memoriam[8] é um testemunho desse empenho. Atento às dificuldades dos seus pares, luta pelos seus direitos e dos respetivos familiares. Preocupações explícitas na sua participação, em 1909, na publicação Miséria[9]. Joaquim Lopes “sempre procurou dar resposta a dois ímpetos que o moviam – o sentido de justiça e o sentido de liberdade (Santos, 2014, 119), bem expressos na IV e VII Missões Estéticas de Férias, realizadas respetivamente em Viana do Castelo (1940) e em Bragança (1943)[10], sob a sua direção. Criadas para “dotar a formação dos artistas e estudantes portugueses de artes plásticas com o conhecimento do património estético da Nação, nos seus valores naturais e monumentais” (Joaquim Lopes Apud. Xavier, s/d, 1), não lhes era alheia a intenção política.
Apreciado pela crítica e pelo público, realizou e participou em múltiplas exposições individuais e coletivas, em Portugal, no Brasil ou em Espanha, encontrando-se representado em vários museus nacionais.
A sua obra é testemunho dos princípios que o moveram ao longo da vida, com forte sentido social e telúrico onde “o fundamental era descobrir e descobrir-se através da pesquisa e do trabalho que via como uma longa estrada sem limite ou barreira. (Santos, 2012, 109).
“Recomeça …se puderes, sem angústia e sem pressa e os passos que deres, nesse caminho duro do futuro, dá-os em liberdade…”[11].
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[1] GUEDES, Hélia Lopes Viana Borges (2009) – Joaquim Lopes, meu avô. In: FAUVRELLE, Natália (coord.) – Mestre Joaquim Lopes. Peso da Régua, Museu do Douro, p. 110.
[2] ALVES, Justino (2019) – Uma pintura de Excelência. Natália (coord.) – Mestre Joaquim Lopes. Peso da Régua, Museu do Douro, p. 109.
[3] O pai, José Francisco Lopes, foi mestre-de-obras, a mãe, Olívia Pereira, foi costureira. Tiveram nove filhos. O avô paterno também foi mestre-de-obras e frequentou o Instituto Industrial do Porto.
[4] Promovida pelo O Comercio do Porto e que resultou numa exposição de grande sucesso.
[5] Escola Industrial “Infante D. Henrique” (1919), passando pela Escola Industrial e Comercial de Gondomar (1922-1925), Escola Faria Guimarães (1925 – 1930).
[6] Substitui Marques de Oliveira na Cadeira de Pintura.
[7] Jornal de Noticias: 28.4.1950.
[8] Publicação inserida nas Comemorações do Centenário do Nascimento de Soares dos Reis (1847-1889), em 1947.
[9] MISÉRIA. [Catálogo] Número-único publicado sob a direção de Ariosto Silva e por iniciativa de alunos da Academia Portuense de Belas-Artes e cujo produto total será entregue na redacção do Primeiro de Janeiro para ser distribuído pelos pobres do Douro. Porto: [s. n.], 1909. (Joaquim Lopes apud Santos, 2014, p.40).
[10] Criadas no contexto da remodelação do então Ministério da Instrução Pública – Lei nº 1.941, de 11 de Abril de 1936, foram promovidas pela Academia de Belas Artes de Lisboa e decorreram entre 1937 e 1964. A primeira direção coube a Raul Lino e decorreu em Tomar. Assumiram-na depois, entre outros, Vergílio Correia, Alberto Sousa ou Varela Aldemira.
[11] Miguel Torga (1907–1995) -, Diário XII “Sísifo”.
ABANDONADAS
Joaquim Lopes (1886-1956)
1939
Óleo sobre tela
Dim. [Alt.] 80 x [Larg.] 51 cm
Doação António Metello Seixas (2013)
Museu de Lamego, inv. 8485
BIBLIOGRAFIA
ALVES, Justino (2019) – Uma pintura de Excelência. In: Fauvrelle, Natália (coord.) – Mestre Joaquim Lopes. Peso da Régua, Museu do Douro.
COSTA, Diogo Moraes Leitão Freitas (2016) – Missões Estéticas de Férias. Estética, Academia e Política numa iniciativa de formação artística do Estado Novo. Tese apresentada à Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. Disponível em: https://freitascostadiogo.files.wordpress.com/2020/02/anexo-1-fortuna-critica-jornais-revistas-final.pdf [Consultado em abril/maio de 2021].
FAUVRELLE, Natália (2009) – Mestre Joaquim Lopes: apontamentos biográficos. In FAUVRELLE, Natália (coord.) – Mestre Joaquim Lopes. Peso da Régua, Museu do Douro.
FRANÇA, José-Augusto (1985) – A Arte em Portugal no Século XX. 1911-1961. Venda Nova: 2ª ed., Bertrand Editora.
FRANÇA, José-Augusto (1991) – O Modernismo na Arte Portuguesa. Biblioteca Breve. Nº 43. Lisboa: 3ª ed. Instituto de Cultura e Língua Portuguesa / Ministério da Educação.
GUEDES, Hélia Lopes Viana Borges (2009) – Joaquim Lopes, meu avô. In: FAUVRELLE, Natália (coord.) – Mestre Joaquim Lopes. Peso da Régua, Museu do Douro.
SANTOS, Teresa Campos (2012) – Joaquim Lopes. Questões de estilo em torno da obra do pintor. Vol. I. Dissertação apresentação à Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Disponível em: https://repositorio-aberto.up.pt/handle/10216/66439 [Consultado em abril / maio de 2021].
XAVIER, Pedro (s/d) – Educação Artística no estado novo: As missões estéticas de férias e a doutrinação das elites artísticas. III Congresso Internacional da APHA. Disponível em: https://apha.pt/wp-content/uploads/boletim4/PedroXavier.pdf [Consultado em abril / maio de 2021].
Georgina Pessoa | maio 2021