
VISTA SOBRE A TORRE DOS CLÉRIGOS [título iconográfico]
“… Ó ruas torturadas e compridas,
Que diz ao vê-lo o rosto da cidade
Onde as veias são ruas com mil vidas? …”
Pedro Homem de Melo[1]
Ausentes ou perdidas no silêncio das pedras. No espaço vazio, profundo e sinuoso, onde as ruas se curvam sobre a morfologia íngreme da encosta… recortam ameias no ondulado dos beirais e as sombras espelhadas na verticalidade das paredes, constroem muralhas. Simulam fortes. Enquanto as linhas das cornijas definem um ângulo que converge para a altaneira e vetusta torre dos Clérigos, obra de referência de Nicolau Nasoni (1691-1773) e ícone da cidade do Porto. Há um registo de vida na porta entreaberta, nas janelas de guilhotina levantadas, na roupa estendida ao sol. Sob a luz coada de um morno fim de tarde, numa rua estreita da zona histórica da cidade.
João [Augusto da Silveira] Tavares, autor da aguarela em destaque este mês, nasceu em Portalegre, a 22 de setembro de 1908, onde viria a falecer em 1984.
O seu percurso far-se-ia em estreita ligação com a sua cidade, onde viveu e trabalhou a maior parte da sua vida. Exceção feita aos anos (1927-1929) em que fez o Curso do Magistério para professores liceais do 9.º Grupo, em Lisboa, e ao subsequente estágio no Liceu Pedro Nunes. Em 1932 iniciou a atividade docente no Liceu de Portalegre, como professor de Geografia e Desenho. Aqui fez toda a sua carreira profissional. De professor provisório a professor do quadro, veio a assumir vários cargos de Direção[2], tendo sido nomeado Vice-reitor em 1963. “Dinamizador da vida estudantil, foi uma referência para todos os que tiveram o privilégio de o ter como professor e colega. É dele a conceção do símbolo do Liceu Nacional de Portalegre e que hoje ainda constitui a imagem gráfica da Escola”. (Traguil, 2012, 5). A par das aulas, do zelo e do espírito motivador com que envolvia os alunos, a arte, a aguarela em particular, foi uma presença constante na sua vida. Expressão da sua sensibilidade, criatividade e pensamento, encontra na paisagem, rural ou urbana, a personagem dominante dos seus temas. As suas obras traduzem o gosto pelos tratamentos perspéticos, criados por enquadramentos arquitetónicos, ou pelos breves apontamentos que deles emergem na paisagem natural. Na longínqua urbe que pontua o horizonte com o altaneiro castelo ou com as torres sineiras da Sé ou da igreja. No portão, flanqueado por frondosas árvores, que se abre num provocante convite a entrar, ou na rua estreita, emparedada, da zona velha da cidade. Numa paleta delicada, de subtis gradações cromáticas, inundadas de luz, ou em fortes contrastes de luz/ sombra o registo humano raras vezes está presente no espaço visível. Intuímo-lo no seu interior, sentimo-lo no diálogo que implicitamente se estabelece entre a obra e o observador.
Artista considerado e premiado, saliente-se a representação de Portugal, em 1947, na Exposição Internacional de Aguarela, em Espanha, a atribuição da 1.ª medalha do Salão do Estoril, a 1.ª medalha da Sociedade Nacional de Belas Artes, ou os prémios (1.º e 2.º) Roque Gameiro. O seu envolvimento ativo na vida cultural de Portalegre, passa pela participação, no início dos anos 40, nas tertúlias do Café Central, posteriormente mudadas para o Café Facha, que tinham como mentor Feliciano Falcão (1911-1988), respeitada figura no meio intelectual português e nos elementos de resistência, tendo integrado o MUD[3] a partir de 1947. Do grupo de tertulianos faziam parte, entre muitos, José Régio (1901-1969), Firmino Crespo. (1907-1995), Arsénio da Ressurreição (1901-1991) e Miguel Barrias (1904-1952), então, colegas, na docência.
“O seu nome está igualmente associado à organização de eventos de cariz cultural realizados na cidade de Portalegre especialmente na concepção e organização de espaços, na concepção gráfica de cartazes e no campo da ilustração editorial” (Traguil, 2012, 6), designadamente, a intervenção feita, juntamente com Renato Torres (1913-1974) nas Festas Centenárias, de 1950.
Como pedagogo formou e semeou em muitos jovens o “bichinho” pela arte. “Dinamizador da vida estudantil, foi uma referência para todos os que tiveram o privilégio de o ter como professor e colega” (Traguil, 2012, 4).
A ligação a Portalegre ficaria selada na decisiva colaboração com os industriais Guy Fino e Manuel Celestino Peixeiro, criadores da Manufatura de Tapeçarias de Portalegre, para a qual João Tavares foi autor do primeiro cartão – “Diana” -, dando origem à primeira tapeçaria portuguesa, produzida em 1948, e também à primeira de muitas colaborações do pintor com a manufatura.
Na sequência desta colaboração, o João Tavares aguarelista dá lugar ao cartoonista, trocando a liberdade criativa da aguarela pela disciplina requerida para a feitura de cartões para tapeçaria.
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[1] Melo, Pedro Homem (2007) – Balada ao Rio Douro. In: “Eu, Poeta e Tu, Cidade”. Quasi Edições.
[2] Diretor das Instalações de Geografia, Desenho e Trabalhos Manuais; Diretor de Ciclo.
[3] Movimento de Unidade Democrática – Movimento político de oposição ao regime salazarista, em Portugal. Constituído em 8 de outubro de 1945, em Lisboa.
VISTA SOBRE A TORRE DOS CLÉRIGOS
[título iconográfico]
João Tavares, 1950
Aguarela
Dim.: [Alt.] 52,1 x [Larg.] 41,1 cm
Proveniente Legado Ana Maria Pereira da Gama
Inv. ML 7826
BIBLIOGRAFIA
AA.VV. (1996), 50 Anos de Tapeçaria em Portugal. Manufactura de Tapeçarias de Portalegre, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
ABREU, Rui (2001) – Património Cultural da Marinha. Peças para recordar. A tapeçaria de Portalegre da Escola Naval. p.216. Disponível em: https://www.marinha.pt/Conteudos_Externos/Revista_Armada/2001/files/basic-html/page217.html
ALMEIDA, Marina (2019) – Tapeçaria de Portalegre: as obras de arte raras feitas de lã.: Artes, Estilo e Memória. Disponível em: https://ocio.dn.pt/artes/tapecaria-de-portalegre-as-obras-de-arte-raras-feitas-de-la/22724/
REGO, Carla; FALCÃO, Cláudia; LOPES, Eunice (2012) – A tapeçaria de Portalegre: um pretexto artístico e cultural na optimização do olhar turístico. In: Asensio, Ibañez, Caldera, Asenjo & Castro (Eds.) (2012) SIAM. Series Iberoamericanas de Museología. Vol. 3. Disponível em: https://repositorio.uam.es/bitstream/handle/10486/11506/57109_8.pdf?sequence=1
COUTINHO, António Martinó de Azevedo (2015) – Mestre Gil Vicente aos quadradinhos -07. Disponível em: https://largodoscorreios.wordpress.com/2015/02/24/mestre-gil-aos-quadradinhos-07/
COUTINHO, António Martinó de Azevedo (2015) – Portalegre 2050 – 3. Disponível em: https://largodoscorreios.wordpress.com/
FREIRE, Paula Cristina Breites Moreira (2012) – O Museu Municipal e a Rede de Património de Portalegre – política de conservação e valorização de bens museológicos (2006-2012). Mestrado em Museologia apresentado à Escola de Ciências Sócias da Universidade de Évora. Disponível em: http://www.rdpc.uevora.pt/bitstream/10174/16131/5/Museu%20Municipal%20e%20a%20Rede%20de%20Patrimonio%20de%20Portalegre.pdf
MANUFACTURAS das Tapeçarias de Portalegre. Disponível em: https://www.mtportalegre.pt/pt/amanufactura/historia
MARTINS, Mário Casa Cova (2006) – João Tavares. Disponível em: https://avozportalegrense.blogspot.com/2006/07/joo-tavares-pequena-biografia.html
TRAGUIL, António (2012) – Contributos para a divulgação do espólio museológico da Escola Secundária Mouzinho da Silveira. In: PROFFORMA Nº 12 – março 2014. Disponível em: http://cefopna.edu.pt/revista/revista_12/ame_04_12_aeb.htm.
Georgina Pessoa | setembro 2021