“Junho calmoso, ano formoso”
Relembramos o conhecimento popular para que o “outono” em que o mundo mergulhou, como a atmosfera sombria e agitada da obra selecionada, recupere a acalmia, quente e reconfortante da luz de junho. Sem vendavais nem terra queimada.
Faz parte da doação de António de Almeida Metelo Seixas (2013) este óleo sobre madeira do artista vimaranense Abel Cardoso (1877-1964), considerado um dos maiores paisagistas da sua geração. Filho do pintor retratista António Cardoso (1831-1894), emigrado para o Brasil ainda jovem. Formado na Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro (1860), fez da litografia e da fotografia uma componente importante da sua atividade e proventos. Prática que manteve em Guimarães, após o regresso a Portugal, em 1865. Aqui abriu o primeiro atelier – “Photographia e Pintura Cardozo”, em funcionamento até ao fim do século. Como outros, associa estas duas áreas, cuja relação foi determinante a partir dos meados do século XIX, na prática artística e impulso dado aos movimentos de vanguarda. Também como forma de arte e como testemunho.
Abel Cardoso herdou e cresceu num meio que estimulou a sua sensibilidade, conhecimento e prática artística. É certamente pela mão do pai que faz os primeiros rabiscos e experimenta as primeiras manchas de cor. Faz a sua formação na Academia de Belas Artes do Porto (1889 e 1895) onde foi discípulo de António Correia (1822) e Marques de Oliveira (1853-1927). Paris (1896) surgia como a continuidade obrigatória no percurso dos artistas como o próprio afirma: “Os consagrados fechavam aos nossos olhos os segredos da sua arte […] para ser considerado artista mesmo, era indispensável conseguir um estágio em Paris, sem o qual ninguém nos ligaria nunca grande atenção …” (A. M., 1946)[1] Aqui frequenta a École Nationale des Beaux Arts, onde tem por mestre Jean Léon Gérôme, a Academia Julian e os ateliers de Benjamim Constant e Jean Paul Laurens. Priva com outros artistas, alguns portugueses, como António Carneiro, que vêm trazendo na bagagem esse sonho da aprendizagem, do reconhecimento e da aventura. Ver, sentir, experimentar. Cadinho propício ao encontro de novos conceitos, de novas linguagens, que de algum modo vão encontrando eco em Portugal. “O início do pensionato e o envio dos estudantes para Paris, como complemento de formação nos últimos vinte anos do século XIX, irá trazer à arte portuguesa e à pintura de paisagem um novo fôlego, e um novo impulso” (Vasconcelos, 2012, p. 119). Após breve estada no Brasil (1898), a que “imperiosos deveres de família”[2] obrigaram ao regresso, fixa-se em Guimarães onde pinta paisagens e retratos e inicia a atividade docente, na Escola Francisco Holanda (1915-1931). Justamente onde o pai tinha sido o primeiro professor de Desenho, e ele aluno. Viria posteriormente a assumir a direção da Escola. Também no Liceu de “Martins Sarmento” assegurou por diversas vezes a disciplina de Desenho. Pedagogo dedicado e atento, foi também um cidadão participativo nas atividades da cidade. Nas Festas Gualterianas[3] “ teem contribuido com o máximo do seu esforço e da sua inteligência para o explendor e bom êxito das nossas festas […] Abel Cardozo, o artista de raro apreço, uma individualidade de nome feito a quem pertence o belo cartaz de 1914”[4]. O gosto e valorização da cultura, tradições e património (natural e construído) da sua terra, está bem patente nas temáticas abordadas pelo pintor, a preencherem a sua vasta obra. Testemunho e síntese a enriquecer o enquadramento das Gualterianas de 1969, onde se homenageou o pintor, com a realização de uma grande exposição com obras suas, na Sociedade Martins Sarmento[5]. Edifício-sede[6] projetado (1900-1908) pelo arquiteto Marques da Silva (1869-1947) onde coube a Abel Cardoso fazer a “pintura decorativa dos nichos localizados no interior dos vãos resultantes das arcadas do andar nobre, na fachada principal do edifício, alargando a sua participação à decoração do interior do salão nobre.” (Vasconcelos, 2012, p. 141).
Em 1931 vai para Lisboa, para a Escola Industrial Afonso Domingues, onde permanece até 1947. José Craveiro[7] descreve-o como “uma figura inconfundível: a sua elevada estatura e as barbas brancas distinguiam-no tão bem entre os demais professores como a posição de mentor em que frequentemente o colocavam. […] Espírito aberto, compreensivo ” (Craveiro, 1969)[8]. O mesmo caráter lhe tece Domingos Ferreira a propósito da atribuição do seu nome a uma rua da cidade “Artista plástico, paisagista, pintor consagrado de mérito. Homem forte, alma aberta e franca, de grande carácter, coração magnânimo”[9]. Jubilado regressa ao Minho, à sua aldeia, São Martinho de Gondomar, onde continua a reter nas suas obras, singelos fragmentos da sua terra. “AbelCardozo é um pintor do Minho, desse Minho oftálmico de luz, com gerânios vermelhos e cravos sangrentos ao correr dos valados, vinhas esmeraldinas onde o sol se quebra em topázios de luz …” (Portela, 1924)[10]
Mais do que a mímesis do lugar ou das gentes é a apreensão do que o seu olhar vê e o seu espírito sente, como se observa nesta peça do Museu de Lamego. A luz e a cor em pinceladas fartas e enérgicas, a emoção e a simplicidade, corporizada pela árvore desta paisagem fustigada por vendavais inesperados, imersa numa atmosfera quase caótica. Ao fundo a igreja. Em último plano a linha do horizonte, ondulante e longínqua, desenhada pelas montanhas. Separam a terra do céu para onde parecem apontar as imponentes torres sineiras que ladeiam o corpo central do templo.
Nas exposições realizadas, no reconhecimento dos seus pares e do público, o registo da mesma aceitação despretensiosa como tão poeticamente refere Fidelino de Figueiredo: “A altura ocultou-lhe as baixezas da vida e a aba do chapeirão defendeu-lhe os olhos de fáceis deslumbramentos” (Figueiredo, 1964, 5)[11]. Da sua obra, hoje distribuída por várias coleções e instituições museológicas[12], esperou a partilha e o diálogo com todos os que o quisessem conhecer e compreender. Concordamos com a afirmação de Raul Brandão: “Conheço-o muito melhor se me deixo ficar durante uma hora em frente destas telas” (Brandão, 1923, p.3). Ou talvez mais… Tanto quanto o nosso gosto e a nossa capacidade de comunicar, interpelar e interagir …
[1] A. M. (1946) – “Cinco minutos de Palestra com o pintor Abel Cardozo” In: O Primeiro de Janeiro de 21-VIII – 1946. Documento partilhado pelo Museu Alberto Sampaio.
[2] Idem, Ibidem
[3] Realizadas a partir de 1906, pela Associação Comercial de Guimarães, em homenagem a S. Gualter.
[4] A SENTINELA – de 4 de Agosto de 1917. Numero 22-23, p. 6.
[5] Instituição de que foi sócio efetivo desde 1905 e sócio honorário desde 1957. Responsável pela “Secção de Arte Moderna”.
[6] Projetado entre 1900-1908. Interrompido e retomado a partir de 1934, concluído em 1967. Integra os claustros e jardins do extinto Convento de São Domingos.
[7] Colega de Abel Cardoso na Escola Industrial Afonso Domingues, em Lisboa, professor de História e Filosofia. Em 1969 era Diretor da Escola Francisco de Holanda em Guimarães.
[8] Craveiro, José (1969) – Abel Cardoso. In: Notícias de Guimarães, 2 de agosto de 1969.
[9] Ferreira Domingos (2011) – Toponímia de Guimarães. Rua Pintor Abel Cardoso. In: Comércio de Guimarães de 14 de dezembro de 2011.
[10] Portela, Artur (1924) – Diário de Lisboa (5-11-24) – In: Abel Cardozo. Artista Pintor Vimaranense. 1877-1964. Exposição Retrospectiva. Catálogo. Sociedade Martins Sarmento, 2 de Agosto de 1969.p. 12. Documento partilhado pelo Museu Alberto Sampaio.
[11] Figueiredo Fidelino (1964) – Abel-Cardozo. (O primeiro e o último encontro). In: «Revista de Guimarães», Separata do Vol. LXXIV.
[12] Museu de Lamego, Museu Alberto Sampaio; Museu Nacional Soares do Reis, Museu Malhoa, Museu Municipal da Figueira da Foz, Museu da Sociedade Martins Sarmento, Museu Gão Vasco, Museu de Arte Contemporânea (Museu do Chiado).
Vale de São Torcato
Abel Cardoso
Óleo sobre madeira
Dim: [Alt.] 23,7 x [Larg.] 15,3 cm
Doação de António de Almeida Metelo Seixas (2013)
Museu de Lamego, inv. 8507
BIBLIOGRAFIA
BRANDÃO, Raul (1923) – Abel Cardozo. In: Exposição de Pintura de Abel Cardozo. Catálogo Ilustrado.
CARDOSO, Mário (1965) – Homenagem póstuma a Abel Cardoso, artista pintor vimaranense. Revista de Guimarães, 75 Jan.-Dez. 1965, p. 205-207. Disponível em: https://www.csarmento.uminho.pt/site/files/original/69351b040ca22ed6a0fdbad4d9542a89b9c39046.pdf [Consultado em maio de 2021].
CRAVEIRO, José (1969) – Abel Cardoso. In: Notícias de Guimarães, 2 de Agosto. Disponível em: http://araduca.blogspot.com/2018/08/abel-cardoso-por-jose craveiro.html [Consultado em maio de 2021].
FERREIRA, Domingos – Toponímia de Guimarães. Rua Abel Cardoso. In Comercio de Guimarães, de 14 de Dezembro de 2011. Disponível em: http://www.muralha.org/uploads/6/2/8/5/6285999/cidade_da_muralha_cg.pdf [Consultado em maio de 2021].
FRANÇA, José-Augusto (1985) – A Arte em Portugal no Século XX. 1911-1961. Vendas Novas: 2ª ed., Bertrand Editora.
PORTELA, Artur (1924) – Diário de Lisboa (5-11-24) – In: Abel Cardozo. Artista Pintor Vimaranense. 1877-1964. Exposição Retrospectiva. Catálogo. Sociedade Martins Sarmento, 2 de Agosto de 1969, p. 12.
VASCONCELOS, Artur Duarte Ornelas (2021) – Do Retrato à Paisagem. Memórias Afetivas e Operativas do arquiteto Marques da Silva. Vol. I. Dissertação de doutoramento apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Disponível em: http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/6634 [Consultado em maio de 2021].
Nota de Agradecimento:
Ao Museu Alberto Sampaio, à Dra. Isabel Fernandes, Dra. Maria José Meireles e Dra. Sofia Barbosa a colaboração e partilha de documentação relativa a Abel Cardoso, contributo importante para a compreensão do percurso e obra deste pintor.
Georgina Pessoa | junho 2021