Horário: Todos os dias. Das 10h00 às 12h30 e das 14h00 às 18h00. (Aberto, parcialmente, devido às obras de reabilitação do edifício)

Pintura “Paisagem da Penha”

PAISAGEM DA PENHA

 

A minha casa… Mas é outra a história:

Sou eu ao vento e à chuva, aqui descalço,

Sentado numa pedra de memória”.

– Vitorino Nemésio, “A concha”

 

Em cada um de nós há um segredo,

uma paisagem interior com planícies invioláveis,

 vales de silêncio e paraísos secretos”.

– Antoine de Saint Exupéry

 

Ou planalto de vento.

[…] Aonde a solidão,

a pesar sobre si, quase que arruína

a luz da fronte onde a atenção domina”.

– Fernando Echevarría, “Figuras”

 

Casa, lugar, paisagem de nós, do sítio, do tempo, das vivências e da memória. Narrativas que artistas e poetas traduzem em palavras, luz e cor. “Paisagem da Penha”, peça que destacamos em novembro, é a representação de um desses lugares. Intimista, mágico, intrigante. A atmosfera tisnada dos cinzas invernosos, envolve-nos, chama-nos. O primeiro plano abre-nos essa porta por onde somos convidados a entrar. Caminhamos sobre a várzea aguacenta. Pisamos a relva alagada, os charcos devolvem-nos a imagem de nós mesmos, do movimento das gotas de água, das pegadas que gravam na terra a nossa passagem.

Como os esquiços dessas árvores que circundam as margens dos campos, hirtas, desnudadas, somos impelidos a despojarmo-nos, a libertar a bagagem e subir até ao cume da montanha. Patamar a patamar. A horizontalidade das linhas e a gradação cromática vestem-lhe a forma e os volumes, definem e orientam essa caminhada ascendente. No horizonte, onde a terra se funde com céu, aguarda-nos o templo. Solitário, silencioso, paciente… nessa espera de nós. Uma ténue luz irradia atrás de si, eleva-se e dissipa-se como uma miragem perseguida. Contemplação do infinito e num voltar do olhar, fixamos de novo o lugar de partida, a transparência desse chão, os subtis apontamentos de vermelho sangue, o verde esperança que nos prende e mantém aqui. Como um mapa onde se cartografa a vida e os diversos planos existenciais.

Leitura que nos sugere esta aguarela. Temática apreendida pelo olhar do artista, retida pela excelência e domínio da técnica, a visão do Santuário da Penha em Guimarães[1] e a paisagem particular do Minho. Obra de Jorge Maltieira, integradora da personalidade do homem e do artista, multifacetada, criativa e intensa.

Nasceu no Cartaxo, em 1908 e faleceu no Brasil em 1994. Pintor, escultor, ceramista, professor, historiador de arte, atleta … a sua vida acompanhou todo o século XX com o mesmo espírito obstinado e aventureiro com que atravessou o atlântico.

“Nas planuras da lezíria, no seu convívio com o Tejo ouvindo desde o seu ninho o chilreio dos cartaxos sobre as cepas, alcançou ele a vista até às linhas do horizonte que o rodeavam e sentiu a vontade indómita de conhecer outras terras, outras gentes, outros costumes. […] Do Minho ao Algarve. Dos montes celtas às planuras mouras; da Amazónia às Quedas do Iguassú, tudo gravou, tudo pintou e desenhou, transmitindo-nos o tanto que do Belo os seus olhos e sentimento viam, num papel venturoso de mensageiro do Divino, de todo o encanto e de toda a magia que a Natureza e o Homem nesta lhe ofereciam” (Vasconcelos, 2008).

Fez o Curso Superior de Pintura na Escola de Belas Artes de Lisboa, onde foi discípulo de João Vaz (1859-1945) e Veloso Salgado (1864-1945). Desportista de mérito, fez parte do Sport Lisboa e Benfica, foi campeão regional de saltos em altura, tendo participado nos Jogos Olímpicos de 1928. Participou na vida cultural e artística da sua terra, colaborando nas festas do 1.º de Maio. Foi professor do ensino técnico em Leiria, Guimarães, Coimbra e no Porto e diretor da Sociedade Nacional de Belas Artes. Em 1941, foi destacado com várias distinções e menções honrosas. Recebe o prémio Ferreira Chaves, da Academia Nacional de Belas Artes, o S.N.I. (Serviço Nacional de Informação) atribui-lhe o 1.º prémio Roque Gameiro, obtêm o 1.º prémio no Salão Estoril e a 1.ª medalha em aguarela da SNBA (Sociedade Nacional de Belas Artes).

Enquanto ceramista deu asas aos seus dotes artísticos na Fábrica de Sacavém, Vieira da Natividade, em Alcobaça e Cavalinho, nos Carvalhos. Radicado no Brasil a partir de 1949, aqui deu continuidade a este gosto e prática tão presentes na cultura e tradições portuguesas, fundando em Araruama (Rio de Janeiro) a Cerâmica Maltieira. Cria, na Galeria Cataldi a revista “Cinco Quinas” abordando temas relacionados com a Cultura, a História e a Arte, particularmente relacionados com a presença portuguesa, marcos históricos e herança colonial, numa afirmação da portugalidade, que o próprio nome encerra. “É analisando os monumentos artísticos do passado que melhor nos familiarizamos com a força criadora de quem os construiu, é consultando-os e interpretando-os que aurimos novas forças inspiradoras para prosseguir na rota do futuro. […] Caminhei com a alma lusa dentro de mim” (Maltieira, 1968).

Jorge Maltieira legou-nos uma vasta obra pictórica e escrita, também ilustrada por si, como Ouro-Preto-Relicário do Brasil ou Legenda dos Séculos (Vol. I, II, III, IV). Participou em exposições coletivas em Portugal e realizou diversas exposições individuais no Brasil. Encontra-se representado em coleções públicas e privadas e em várias instituições e museus como o Museu Nacional do Rio de Janeiro, no Brasil, em Portugal, no Museu de Arte Contemporânea, Museu Alberto Sampaio, Museu José Malhoa, Museu Nacional Grão Vasco e Museu do Abade de Baçal, entre outros, e, a partir de 2013, no Museu de Lamego, através da doação António Metelo Seixas.

Em 1979, a Comissão Municipal de Toponímia do Cartaxo perpetuou o seu nome numa rua da cidade e, em 2008, celebrou o centenário do seu nascimento, com a publicação da obra Jorge Maltieira: O Homem e o Artista, de Arménio Vasconcelos. Palavra do preito merecido, que a escrita evoca e a pintura mostra.

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[1] Santuário de Nossa Senhora do Carmo da Penha, projeto de 1930, do arquiteto José Marques da Silva (1869-1947).

PAISAGEM DA PENHA

Jorge Maltieira (1908-1994)

c. 1945

Aguarela

Dim.: [Alt.] 23 x [Larg.] 20 cm

Doação António de Almeida Metelo Seixas

Inv. ML 8500

BIBLIOGRAFIA

 COMEMORAÇÕES. CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DE JORGE MALTIEIRA. (2008) Cartaxo. Ed. Câmara Municipal do Cartaxo. Extraído de: VASCONCELOS, Arménio (2008) – Jorge Maltieira: O Homem e o Artista. Cartaxo, Edições & designe Lda.

ERNESTO Veiga de Oliveira, FERNANDO Galhano, Benjamim Pereira (1995) – ALFAIA AGRÍCOLA PORTUGUESA. Coleção Portugal de Perto 33. Lisboa, Ed. Etnográfica Press. Disponível: https://books.openedition.org/etnograficapress/6697

FRANÇA, José-Augusto (1985) – A Arte em Portugal no Século XX. 1911-1961. Vendas Novas: 2ª ed., Bertrand Editora

MALTIEIRA, Jorge (1968) – Legendas dos Séculos. Bahia, Gráfica Editora Lord S.A. 1º Vol. pp. 21-24. In: LEAL, Miguel Montez (2016) – Os Artistas. Coleção Cartaxo. 200 anos do Concelho. Cartaxo, Ed. Potenciais.

PAMPLONA, Fernando de (1988) – Dicionário de pintores e escultores portugueses. Vol. IV. Barcelos, 2ª ed. Livraria Civilização Editores, p. 46.

Nota de Agradecimento:

À Câmara Municipal do Cartaxo / Biblioteca Municipal Marcelino Mesquita, à Dra. Inês Barroso e Elsa Rocha pela colaboração e partilha de documentação relativa a Jorge Maltieira.

Georgina Pessoa | novembro 2021