Do Douro ao Norte da Europa. Uma “outra” paisagem
Visitação, de Vasco Fernandes
O conjunto das cinco tábuas remanescentes do retábulo que o pintor Vasco Fernandes (Grão Vasco) executou para a catedral de Lamego, entre 1506-1511, foi cedido ao Museu Nacional Grão Vasco, onde figurará em exposição até ao próximo mês de setembro.
Um bom motivo para regressar à paisagem na obra do pintor, na rubrica 12 meses 12 peças que, este ano, dedicamos ao Douro, à sua paisagem, mas também a outras paisagens que o habitam.
Assim sucede com o painel da Visitação que, não tendo a paisagem como tema [teria que esperar-se pela segunda metade do século XVI e por Pieter Brueghel, o Velho, c. 1525/1530-1569, para o arranque definitivo da paisagem como género autónomo (Kubissa, 2013, 17)], nos revela uma paisagem que na sensibilidade, no que tem de subtil, não tem de paralelo imediato na pintura portuguesa do tempo (Rodrigues, 2000, 337) como o sublinhou a historiadora de arte Dalila Rodrigues, que, justamente, escolheu o cenário paisagístico do episódio bíblico para capa do livro que escreveu sobre a obra do pintor, Grão Vasco (Aletheia,2007), resultado de um exaustivo e o mais completo trabalho de investigação realizado sobre o mestre de Viseu.
Mas, sendo certo que várias gerações de investigadores, já muito antes haviam detido o seu olhar sobre esta paisagem, tão particular, é através do modo como a viram e a descreveram, que o convidamos a contemplá-la, volvidos mais de 500 anos sobre a sua produção:
“Na casa capitular [da Sé de Lamego] vimos quatro quadros de estilo flamengo pintados em madeira talvez nos princípios do século XVI. Pareceram-nos dignos de nota por serem de uma eschola diferente das outras conhecidas em Portugal. De bom grado os reputaríamos obra de pintor extrangeiro se não víssemos num d’elles um carro com a forma característica d’aqueles que ainda hoje se usam em Lamego” (Simões, 1888, p. 155).
“Na tábua da Visitação nota-se a mesma perfeição das figuras, mas a scena, passada em pleno ar livre, permitiu ao pintor revelar todas as suas extraordinárias faculdades, enquanto paisagista.
(…) Por cima dessas figuras femininas divisa-se sobre as rochas e entre o arvoredo um homem de idade, naturalmente o companheiro S. José, levando o burrinho viageiro pela arreata.
Caem depois os olhos numa larga paisagem clara (p. 31) onde há montes e águas, casario e figuras, e sobre a qual dois anjos desfraldam a longa flamula das suas túnicas. As habitações mostram as altas empenas neerlandezas; mas as scenas e os personagens são nacionais. Um moleiro beirão, deixando o macinho descarregado, atravessa ajoujado sob o saco o pontilhão que conduz ao corpo da azenha flamenga. Duas figurinhas de velho e de mulher, esta com um potinho quinhentista de bojo gordo e gola baixa. À cabeça – num grupo semelhante ao formado pela Leanor e aquele cavaleiro que à entrada da cidade, no quadro da Visitação viseense, palestram, entretêm-se aqui, vizinhando com um carro de bois da região, absolutamente igual aos que se empregam hoje entre Lamego e Viseu. E os boisinhos de tiro descansa perto, e galinhas e patos, dois porquinhos pretos raianos, e mais junto da azenha um rebanho de ovelhas cujo pastor esfarrapado ergue o pardo perfil à esquina de uma casa, completam o ambiente de rusticidade que o pintor quis marcar no encontro”. (Correia, 1924, p.30).
Ressalta, em ambas descrições, o verismo da representação naturalista da paisagem. Um naturalismo que, no entanto, não significa que o artista pretendesse uma representação real. Muito pelo contrário. A paisagem é idealizada, como idealizadas são as figuras do tema principal. Na verdade, como tão bem notam os autores, a paisagem é rica em apontamentos tirados do natural: as nuvens, as árvores, os rios, os jogos de luz e sombra, ao filtrar-se a luz por entre as nuvens, por entre os ramos de árvores e a refletir-se nas diferentes superfícies…; as figuras humanas, os animais e os objetos que a animam, fazem intuir a saída do pintor da sua oficina para registar a natureza. De volta à oficina, utilizava a informação recolhida não para reproduzir uma paisagem concreta, mas para a construção de uma paisagem ideal, que a interpretação naturalista tornava veraz (Kubissa, 2013,18).
O painel da Visitação corresponde a uma das tábuas que sobreviveram do retábulo encomendado pelo bispo João Camelo de Madureira (1503-1511). Apesar de restarem apenas cinco de um conjunto inicial de vinte, o contrato de encomenda estipulava que Vasco Fernandes devia executar um retábulo constituído por um conjunto de 20 painéis pintados, que seria composto por esta ordem: dois painéis ao centro, figurando o de cima Deus Pai com o globo na mão e rodeado de anjos, e o de baixo, a Virgem sentada, com o Menino ao colo; em três fieiras com três quadros de cada lado, cenas da criação do mundo, da criação de Adão, e infância de Jesus, desde a Anunciação até à Apresentação no Templo. Entre as duas tábuas, a Visitação, da Virgem a sua prima, Isabel, o tema principal. As duas mulheres figuram bem estruturadas e envoltas em largos panejamentos Duas figuras femininas, estrategicamente colocadas por trás da Virgem, são uma alusão provável às suas virtudes: Formosura da Castidade, na figura ricamente vestida que segura um cesto com frutos, e a Humildade, na outra. Dois anjos, agitando-se no céu, encimam a composição.
Visitação
Vasco Fernandes (Grão Vasco)
1506-1511
Óleo sobre madeira de castanho
Catedral de Lamego. Altar-mor
Inv. ML 16
Visitação
Manuel Pinheiro da Rocha (Britiande, Lamego, 1893 – Porto, 1973)
1933
Reprodução fotográfica em suporte papel. Processo fotográfico: gelatina e sais de prata
Fundo antigo do Museu de Lamego
BIBLIOGRAFIA
CORREIA, Vergílio (1924) – Vasco Fernandes. Mestre do Retábulo da Sé de Lamego. Coimbra: Imprensa da Universidade.
DIONISIO, Santana (1988) – Guia de Portugal. Trás-os-Montes e Alto Douro. II – Lamego, Bragança e Miranda. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2ª ed.
KUBISSA, Teresa Posada (2013) – Rubens, Brueghel, Lorrain. A paisagem nórdica do Museu do Prado (catálogo de exposição). Lisboa: Museu Nacional de Arte Antiga, Imprensa Nacional Casa da Moeda.
RODRIGUES, Maria Dalila Aguiar (2000) – Modos de expressão da pintura portuguesa. O processo criativo de Vasco Fernandes (1500-1542). Dissertação de Doutoramento apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Vol. I.
SIMÕES, Augusto Filipe (1888) – Escriptos Diversos […] Colligidos por Ordem da Secção de Archeologia do Instituto de Coimbra. Coimbra: Imprensa da Universidade.