Maria Madalena
Uma sanguínea, representando Maria Madalena, é a obra com que damos início, em 2020, à rubrica 12 meses, 12 peças, que este ano toma como tema a coleção de Desenho do Museu de Lamego. Integra o espólio de Fausto Guedes Teixeira (1871-1840), doado ao museu em 1942. Obra omissa na assinatura e na data, registada no documento de entrada[1] com o nº 362, designada “Uma sanguínea por Sequeira, representando Madalena”.
Trata-se de Domingos António de Sequeira[2] (1768-1837), artista que marcou o universo artístico português nos finais de setecentos e primeiras décadas de oitocentos. Proveniente de um meio humilde, de parcos recursos, mas dotado do talento para que, desde criança, tenha chamado à atenção de familiares, protetores e mestres, que lhe foram assegurando os meios e os contactos necessários à sua formação e sobrevivência. Atento e zeloso, absorve e trabalha, consciente da sua qualidade artística, ao mesmo tempo que constrói um percurso interventivo, contraditório, de busca e de compreensão do seu tempo e de uma identidade onde se cruzam e coabitam os valores pátrios, a fé e a ideologia liberal. Assim como, os do academismo, com que inicia a sua aprendizagem, e as pontes que estabelece entre o neoclassicismo, o romantismo, que aborda, e o naturalismo que perpassa a sua obra. “…daí que seja tão difícil, […] separar vida e obra” (Porfírio, 1997, 32), nas múltiplas vidas que a sua vida parece conter.
Da Aula Régia de Desenho e Figura, onde, aos 13 anos, inicia a sua formação artística, com mestres como Joaquim Manuel da Rocha, alguns prémios no currículo e o nome Sequeira / Siqueira [3], que adota e com que assina os seus trabalhos, parte para Itália (1788) pensionado pela rainha[4] “O que buscou Sequeira nos seus primeiros anos de Roma? […] receber, observar e assimilar uma experiência visual de boa pintura, seguir as lições dos professores, como Cavalucci e Domenico Corvi.” (Beaumont, 1997, 22). Aqui frequenta a Accademia del Nudo e a Accademia de San Luca, na qual será premiado e ingressará como docente. São deste período inicial da sua “carreira” obras como a “Aparição de Cristo a D. Afonso Henriques” e a “Alegoria à fundação da Real Casa Pia de Lisboa” (1793). Volta a Portugal em 1795 num esforço de afirmação como artista e da obra. Fase intensa e multifacetada, marcada pelo refúgio na Cartuxa de Laveiras (1798-1800), a sua renúncia e o regresso ao mundo exterior, motivado pela atribuição de importantes cargos e tarefas[5], enquanto pintor régio, Foi responsável pelos trabalhos na Ajuda[6] e em Mafra[7], mestre de desenho das infantas e diretor da Aula de Desenho fundada no Porto pela Junta da Companhia das Vinhas do Alto Douro (1779). Aqui se encontra aquando da 1ª invasão francesa (1807), deslocando-se a Lisboa no ano seguinte onde trava conhecimento com Forbin[8]. Neste conturbado ambiente político, onde conhece a prisão (1809), evidencia-se a sua versatilidade e virtuosismo. Nos desenhos riscados ao sabor dos serões; no património arquitetónico e etnográfico dos registos de viagens; na atividade de designer testado nos desenhos para a baixela da Vitória, oferecida a Wellington[9]; nos uniformes para os Secretários de Estado; nas medalhas e nas notas emitidas pelo Banco de Lisboa. “[…] em 1820 e 1821, o pintor, sonhando com uma grande composição de conjunto, foi desenhando os retratos […] de deputados às cortes constituintes” (França, 1987,24).
Deixando para trás um período de convulsões políticas e familiares, em 1823, Sequeira viaja para Paris, onde permanece até 1826. São deste período, a sua participação no Salão de 1824 e uma breve passagem por Londres. Do tempo parisiense, deve-lhe ter ficado o fascínio pelo diorama de Daguerre, que algumas composições das suas narrativas pictóricas denunciam, bem como a experimentação do “phisionotraço”, nova técnica do retrato individual.
Com o regresso a Roma, no mesmo ano que termina o exílio em Paris, obtém a consagração e a acalmia desejada, que marcam o fim da sua carreira[10], acrescentando ao profícuo testemunho da sua qualidade e originalidade, obras como Adoração dos Magos, Descida da Cruz, Juízo Final e Ascenção. Subjacente à sua pintura, marcada pela busca de atmosferas lumínicas intensas e contrastantes, emerge o desenho. “Existe, pois, um Sequeira que desenha e outro que pinta. O primeiro está seguro da linguagem e procedimentos que emprega em toda a liberdade individual que lhe confere a intimidade de um trabalho reservado. O segundo preocupa-se sobretudo em agradar aos destinatários da sua pintura”. (Markl, 2014, 133). Nas temáticas que trata (religiosa, histórica, alegórica, retrato, …), nos materiais e técnicas que usa, algumas inovadoras como a litografia, é, porém, na obra gráfica que transmite o melhor da sua capacidade criadora e estética. É através dela que comunica, que apreendemos o seu pensamento, as suas interrogações e o caminho percorrido nessa busca. “Domingos Sequeira serviu-se do desenho como a melhor ferramenta do espírito, para dar forma às coisas em que acreditava ” (Markl, 2014, 226).
O desenho que agora se destaca, cópia, estudo temático ou de composição, é no seu todo uma obra reveladora da maturidade e da excecional mão que o executou, seja nas diagonais que cruzam a posição da figura feminina (Madalena) ou no objeto que sustenta (Sudário?); seja nas cabeças dos jovens (anjos), criando uma composição de grande dinamismo; seja no traço espontâneo e fluido, de uma linearidade enérgica, com que define os contornos, ou no tracejado, contíguo e oblíquo com que aponta os volumes; seja ainda na subtil expressividade dos rostos, no suave modelado definido pelas zonas de luz/sombra e na criação de uma atmosfera envolvente, viva, quase enigmática, na forma como se articulam as zonas deixadas em breve apontamento com as zonas a que dedicou um tratamento de pormenor.
Obra coeva de Sequeira[11] nos seus aspetos formais e estéticos, ainda que com avisada interrogação, justamente atribuível ao artista pela sua qualidade e cunho particular.
Na bagagem do poeta, secretário nas Janelas Verdes[12] durante anos, sobrinho neto do 1º Visconde Valmor, a obra criada numa intencionalidade sugerida, vivida na intimidade do espaço familiar, há décadas retida na quietude das reservas do museu.
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[1] Arquivo do Museu de Lamego: Procº 1-A.1/OFF, fl.2/verso.
[2] Domingos António do Espírito Santo (nome batismal).
[3] Apelido que inicialmente adopta do padrinho Domingos de Serqueira Chaves, cuja grafia vai alterando Siqueira (período de Roma), Sequeira (1803/1804 após ter sido nomeado pintor régio). (Markl, 2014, 54)
[4]Pensionado pelo Real Bolsinho de D. Maria.
[5] Alguns que partilha com Vieira Portuense.
[6] Real Palácio da Ajuda.
[7] Palácio e Convento de Mafra.
[8] Conde de Forbin (1779-1841), também pintor, integrava o exército francês e que mais tarde o apoiará em Paris assim como o conde de Marialva.
[9] Arthur Wellesley, 1º duque de Wellington.
[10] Domingos Sequeira morre em Roma com 69 anos.
[11] Agradecemos à Dra. Alexandra Markl a atenciosa colaboração dada.
[12] Hoje Museu Nacional de Arte Antiga.
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Maria Madalena
Domingos Sequeira (atribuída)
1794 – 1800
Sanguínea
Dim.:[Alt.] 23 x [Larg.] 19 cm
Doação Fausto Guedes Teixeira
Museu de Lamego, Inv. Nº 897
BIBLIOGRAFIA
BEAUMONT, Maria Alice Mourisca (1972-1975) – Domingos António Sequeira. Desenhos, Lisboa, Instituto de Alta Cultura.
BEAUMONT, Maria Alice (1997) – Em Busca de si. In: Sequeira, 1768-1837. Um português na mudança dos tempos (catálogo). Lisboa, Museu Nacional de Arte Antiga, p. 14-23.
BLANCO, Francisco Cordeiro (1956) – Álbum do Palácio de Arroios. Desenhos de Domingos António de Sequeira. Lisboa, Instituto de Alta Cultura.
FRANÇA, José-Augusto (1997) – Os retratos realistas dos Constituintes. In: Sequeira, 1768-1837. Um português na mudança dos tempos (catálogo). Lisboa, Museu Nacional de Arte Antiga, p. 24-29.
LUCENA, Armando de (1969) – Sequeira na Arte do seu tempo. Lisboa, Academia Nacional de Belas Artes.
MARKL, Alexandra Reis Gomes (2014) – A obra gráfica de Domingos António de Sequeira no contexto da produção europeia do seu tempo. Tese de doutoramento, Belas-Artes (Desenho), Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas-Artes, 2014. Disponível em http://hdl.handle.net/10451/11981
PORFÍRIO, José Luís (1997) – Um português na mudança dos tempos. In: Sequeira, 1768-1837. Um português na mudança dos tempos (catálogo). Lisboa, Museu Nacional de Arte Antiga, p. 30-35.
QUINTELA, Fernando Lemos (1990) – Fausto Guedes Teixeira. A sua Vida. A sua Época. A sua Obra. Lamego, Câmara Municipal de Lamego.
Sequeira, 1768-1837. Um português na mudança dos tempos. (Catálogo) (1997) Lisboa, Museu Nacional de Arte Antiga.
VAQUERO, Manuela (2008) – Fausto Guedes Teixeira. O Meu livro – Uma Leitura. Porto, Papiro Editora.
Georgina Pessoa | janeiro 2020