Estudo
O acervo de Fausto Guedes Teixeira (1881-1940), doado pela sua viúva ao museu em 1942, por expressa vontade do poeta, tem sido fértil para a escolha da peça do mês, centrada na coleção de desenho, permitindo-nos a fruição de mais uma obra, a reflexão sobre o autor e o seu enquadramento. Trata-se de um desenho à pena e nanquim datado de 1882, assinado por Alfredo Xavier Pinheiro. Pintor amador e jornalista nascido no Porto em 1863, aqui morreu em 1889. Dotado de precoce e reveladora sensibilidade, a sua formação artística far-se-á fora dos parâmetros institucionais da Academia, num contexto informal e de aprendizagem partilhada. Procura em professores, ateliers, academias privadas e associações o domínio das técnicas do desenho e da pintura que lhe permitiriam participar ativamente nas exposições e iniciativas realizadas na Academia Portuense de Belas Artes[1] (1836), no Ateneu Comercial (1887-1895) (1869) e particularmente no Centro Artístico Portuense (1880-1893). Relevante é também o núcleo de amizades e de contactos que manteve e com quem privou, onde pontuavam os mais ilustres do meio intelectual, burguês e liberal, onde se confrontavam convicções ideológicas, politicas, sociais, culturais e artísticas. Monárquicos constitucionalistas, revolucionários “jacobinos”, republicanos, progressistas e modernistas. Uma sociedade em rápida mudança, perseguindo o ideal de um progresso alicerçado no desenvolvimento industrial e tecnológico, no estímulo dos sentimentos pátrios e nas raízes ancestrais. Demanda de políticas culturais e educativas que exigiam novos paradigmas e uma maior interação social. É neste sentido que têm lugar as reformas no Ensino (currículos, metodologias, concessão de bolsas), o estímulo do mecenato, a valorização da Arqueologia e da Etnografia e do movimento associativo. Enaltecem-se factos e figuras históricas, promovem-se digressões, saraus, exposições, tertúlias. Intensifica-se a atividade gráfica, com periódicos, revistas e publicações de álbuns ilustrados, recorrendo a técnicas como a litografia, fototipia e fotografia. O apelo a um povo que se quer envolver, valorizar e instruir, papel aqui assumido pela museologia, cujos espólios reunidos nos embrionários museus definiam como missão a defesa do património e o seu papel ativo na formação e instrução do povo. Aqui pontuam figuras como Possidónio da Silva (1806-1896), Martins Sarmento (1833-1899), João Batista Ribeiro (1790-1868), Soares do Reis (1847-1889), Tomás A. Soller (1848-1883), Silva Porto (1850-1893), Marques de Oliveira (1953-1927, Torcato Pinheiro (1850-1910), Henrique Pousão (1859-1884), Carlos Relvas (1838-1894), …. Xavier Pinheiro privou com muitos destes seus contemporâneos. No seu breve percurso teve tempo de se envolver intensamente na vida da sua cidade, do seu pais e do seu tempo. Encontramos as suas pegadas enquanto jornalista no diário A Província apoiando o projeto da instalação do Museu Municipal do Porto ao lado de Rocha Peixoto (1866-1909), Ricardo Severo (1869-1940) e João Barreira (1886-1961), na fundação do semanário federalista O Estado do Norte (1880) com José Xavier de Carvalho Júnior (1861-1919) e José Maria Queiroz Veloso (1860-1952). Tenta fundar outro, em 1881, com Heliodoro Salgado (1861-1906), que a falta de recursos frustrou. “Estava eu [Heliodoro Salgado] então no período rubro do meu jacobinismo, todo cheio de santas ingenuidades […] O Xavier atravessava então uma phase mental idêntica. […] mas pouco depois, Xavier Pinheiro refugiouse no culto da Arte, na companhia dos seus quadros queridos, das suas aguarellas, dos seus livros, do seu museu de amador de preciosidades naturaes” (Moncóvio, 2015, 402). Provável fase em que se associa ao Centro Artístico Portuense onde chega a assumir o cargo de 2º Secretário. “aggremiação não só de artistas de belas-artes, como de amadores e de todas as pessoas que estimando o progresso e desenvolvimento d’ellas, se inscreverem no respetivo catalogo dos sócios”[2]. Xavier Pinheiro aqui frequenta o curso de aguarela, participa na revista do Centro “A Arte Portuguesa”[3], nas conferências, tertúlias e saraus. Colabora, juntamente com Marques de Oliveira, nas Comemorações do Tricentenário de Camões com desenhos que ilustram a edição especial “Portugal a Camões”, do Jornal de Viagens (1880), faz parte da comissão literária dos estudantes portuenses, responsáveis pela organização de um espetáculo e pela publicação “Camoneana Académica”, com textos e poemas seus, distinguida com luxuosa edição. Integra as digressões ou passeios artísticos promovidas pelo Centro Artístico que “mobilizam pintores e desenhadores com as suas pastas e as suas caixas de tintas […] em busca, uns [de] um pedaço de paizagem […] outros a copiar o “costume” […] importância que o registo do natural em paisagem teve em Marques de Oliveira, ou na aguarela de Xavier Pinheiro “(Moncóvio, 2015, p.396). Dentro dos princípios impressionistas de captação das cambiantes atmosféricas e lumínicas “ produz ensaios teóricos sobre essas temáticas [traduções]” (Moncóvio, 2015, 432). Em 1882, com Vieira da Cruz e Joaquim Marinho promove a Exposição Permanente de Belas-Artes no Palácio de Cristal, em 1884 participa na 14ª Exposição Trienal, em Pintura, organiza um álbum, incluindo trabalhos de escritores e músicos para o bazar realizado no Palácio (1885) “Para as victimas da Andaluzia e a um canto os nomes dos offerentes, a lettras doiradas, continha textos e desenhos dos nossos melhores artistas e amadores.[…] aquarelas de Xavier Pinheiro e J. Ribeiro”.(Moscovio, 2015, 388). Em 1887 faz parte da comissão da Exposição d’Arte realizada no Ateneu Comercial do Porto. O seu interesse pela natureza leva-o, com outros, a criar a Sociedade Carlos Ribeiro. Em 1889 será dotada da publicação Revista de Sciencias Naturaes e Sociaes, nome sugestivo e indicador da abrangência e modernidade do projeto e da largueza de horizontes dos seus fundadores. Xavier Pinheiro morre nesse ano, deixando uma vida por cumprir, muitos projetos encetados e um elevado sentimento de perda. Entusiasta da Arqueologia e da Etnografia reunia uma coletânea de pelourinhos e realizava um estudo sobre a cerâmica popular portuguesa para publicar na revista. Lembrado por João Barreira.[4] “A Revista tem hoje a registar a morte de Alfredo Xavier Pinheiro um dos cinco primitivos sócios fundadores da Sociedade Carlos Ribeiro (…)” (Fernandes, 2010,103)[5]. Aqui deixa o seu preito ao amigo e algumas notas sobre o homem, o criador e o investigador. Em abril de 1890 o Jornal do Porto dedica-lhe a coluna: “A Exposição D’Arte / A obra de Xavier Pinheiro […] A alma do pintor tomada na sua emotividade suprema e no seu êxito inteiro de significação tem nessa paisagem o perfeitíssimo e sensacional traço revelador. […] brilhante paisagista e como possuindo qualidades excepcionalíssimas de talento[…] a paisagem nº 79, as cabeças d’estudo feitas no Centenário Artístico, o costume de Vianna, a aquarella […] são de uma firmeza e d’uma lucidez pasmante de toque. […] o que agora deixamos nestas columnas é o simples apontamento ligeiro da superioridade que faísca na obra d’esse passionado da arte ….”[6]. Em 21 de junho do mesmo ano a revista “Occidente” publica o texto de Manoel Rodrigues alusivo à exposição de homenagem póstuma “Exposição d’arte no Athneu Commercial do Porto / […] Como preito á memoria do fallecido amador Alfredo Xavier Pinheiro, a exposição fechava com uma grande collecção de trabalhos em todos os géneros, d’aquelle verdadeiro apaixonado pela arte. Eram paizagens, retratos e outros estudos, quer em pintura, quer em aguarella e um desenho. Xavier Pinheiro tinha incontestável talento […] os seus quadros quasi sempre tratados um pouco mais do que em esboço, tinham comtudo uma determinação justa da forma, uma mancha pittoresca e uma harmonia de conjuncto summamente agradável. Era sobretudo um fino observador…”[7]
Não é possível afirmar a ligação destas referências – um “desenho” ou “duas cabeças de estudo” ao desenho que agora se dá a conhecer. Nesta obra, onde se esboça, à esquerda, num fino tracejado, o busto de um ancião de perfil, com longas barbas, cabeça coberta por chapéu de abas largas, e à direita, em despretensiosas manchas, o de uma jovem mulher em posição frontal, com o rosto ligeiramente inclinado, podemos perscrutar no olhar acutilante do ancião, no subtil sorriso da jovem, na expressão contida e enigmática de ambos, a captação de um momento, registo da visão introspetiva de “um fino observador”. Não esquecido, mas certamente à espera de um merecido e atento estudo que melhor o compreenda e lembre.
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[1] Criada no contexto das reformas de Manuel da Silva Passos (1801-1862), em 22 de novembro de 1836 – 1911.
[2] Estatutos e Regulamento Interno do Centro Artístico Portuense (1880), Porto, Ed. Imprensa Internacional, p. 7. Disponível: https://archive.org/details/estatutoseregula00port/page/2/mode/2up
Da direção faziam parte Soares dos Reis, Marques de Oliveira, Manoel Maria Rodrigues, Torcato Pinheiro e António José da Costa.
[3] A Arte Portugueza : Publicado o 1.º número em Janeiro de 1882, o último, nº 12, sai ao prelo em 1884.
[4] Barreira, João (1890) – Xavier Pinheiro. In Severo, Ricardo; Rocha, Peixoto (Dir.) – Ciências Naturais e Sociaes. Vol. I, Porto, Ed. Typographia Occidental, p. 95.
[5] (BARREIRA, 1889: 95). – Fernandes, Isabel Maria (2010).
[6] Jornal do Porto – 1890, nº 92 (19 de abril). Disponível: http://purl.pt/14338/1/j-822-g_1890-04-19
[7] O OCCIDENTE – Revista Ilustrada de Portugal e do Estrangeiro. 13º ANNO, Volume XIII – 414. 21de Junho de 1890, p. 38. Disponível: http://hemerotecadigital.cmlisboa.pt/OBRAS/Ocidente/Ocidente.htm
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Estudo
Alfredo Xavier Pinheiro (1863-1889)
1882
Desenho a pena e nanquim
Dim.: [Alt.] 18,5 x [Larg.] 29 cm
Doação de Fausto Guedes Teixeira
Museu de Lamego, inv. 898
BIBLIOGRAFIA
Antigos Estudantes Ilustres da Universidade do Porto. Disponível em https://sigarra.up.pt/up/pt/web_base.gera
ARTE PORTUGUEZA (revista de archeologia e arte moderna.- Dir. lit. Pereira, Gabriel, (1847-1911); Casanova, Henrique (1850-1913). Disponível em: http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/ArtePortuguesa
ASSUNÇÃO, Maria Manuela Baptista (2015) – Os pintores e os públicos no Porto. Naturalismo, Tardo-Naturalismo do final do século XIX (1880) à Republica (1910). Tese de doutoramento apresentada à Faculdade de Letras do Porto da Universidade do Porto. Disponível em: https://repositorio-aberto.up.pt/handle/10216/96706
CARDOZO, Mário (1966) – “Martins Sarmento e os homens da «Portugália»”. In POVOA DE VARZIM. Boletim Cultural, Número comemorativo do I Centenário Nascimento de Rocha Peixoto. Guimarães, Ed. Câmara Municipal. Disponível em http://ww.cmvarzim.pt/biblioteca/site_rocha_peixoto/documentos_bib_passiva/cardozo_mario_martins_sarmento_portugalia.pdf
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FERNANDES, Isabel Maria (2010) – “Rocha Peixoto: O gosto pela cerâmica e pelos seus artífices”. In: Colóquio Rocha Peixoto no Centenário da Sua Morte. p 93- 102 Disponível em https://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/12374/1/FERNANDES
GONÇALVES, Eduardo C. Cordeiro – “O Conde de Samodães e o discurso conciliador entre catolicismo e liberalismo político”. Lusitânia Sacra. Lisboa. ISSN 0076-1508. 2.ª Série, n.º 16 (2004), pp. 87-109. Disponível em: http://hdl.handle.net/10400.14/4468
MONCÓVIO, Susana (2015) – O Centro Artístico Portuense (1880-1893). Socialização do Ensino, da História e da Arte Moderna no Portugal de oitocentos. Tese de doutoramento apresentada à Faculdade de Letras do Porto da Universidade do Porto.
Disponível em https://repositorio-aberto.up.pt/bitstream/10216/79975/2/36231.1.pdf
Jornal do Porto – 1890, nº 92 (19 de abril). Disponível em http://purl.pt/14338/1/j-822-g_1890-04-19/j-822-g
O OCCIDENTE – Revista Ilustrada de Portugal e do Estrangeiro. 13º ANNO, Volume XIII – 414. 21 de Junho de 1890. Disponível em
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Georgina Pessoa | abril 2020