Busto de mulher
No interessante e diversificado Legado de Ana Maria Pereira da Gama (2013), o desenho está representado por um conjunto de obras de pequeno formato, com registos a caneta de vários locais patrimoniais ou paisagísticos e seis retratos, três dos quais assinados pelo artista António Carneiro. É deste autor a obra destacada em julho, um busto feminino feito a sanguínea em 1928.
António Teixeira Carneiro Júnior nasceu em Amarante no dia 16 de setembro de 1872 e morreu no Porto em 31 de março de 1930. Na sua infância registaram-se episódios cinzentos que marcaram a sua obra, conferindo-lhe uma intimidade, uma intensidade e uma força imanente peculiares. Nas origens adversas, conta-se o pai, comerciante ido para o Brasil. Mais tarde bater-lhe-ia à porta para se reconciliar com ele e com a vida. A mãe, Francisca, de condição modesta, foi o seu primeiro esteio. A ela ficou a dever a primeira caixa de lápis com que riscou os esquiços preliminares que lhe definiram o caminho. Morreu quando ele tinha 7 anos (1879), deixando-lhe uma solidão espelhada em cada obra sua. Esperava-o o internato no Asilo do Barão de Nova Sintra, tutelado pela Misericórdia do Porto, para uma estada de 11 anos. O seu talento desde logo se fez notar nas cópias que fazia das ilustrações religiosas e das publicações periódicas, a que podia aceder. Ingressa na Academia de Belas Artes do Porto em 1884 para um percurso multifacetado. Frequenta o curso de Desenho (1884-1890), em 1890 matricula-se em Escultura motivado pela admiração que nutria por Soares dos Reis, acabando por desistir após a morte do mestre, para se inscrever em Pintura (1891), já fora do internato e com a proximidade do pai, regressado do Brasil. Foi discípulo de António Correia e de Marques de Oliveira. Em 1893 casa com Rosa Queiroz, companheira e bálsamo, a marcar uma década decisiva no seu percurso. Termina o curso com distinção (1896), conhece Teixeira de Pascoais (1895), conterrâneo com quem priva na amizade, nas ideias e nas tertúlias. Com ele viria a assumir a direção de “ A Águia”[1]. Viaja para Paris (1897) com o apoio do Marquês da Praia e de Monforte. Importava-lhe ver e aprender, refletir e verter no seu espírito introspetivo e inquieto, todo o conhecimento que a atmosfera parisiense lhe proporcionava. Cadinho onde fervilhavam as correntes positivistas, simbolistas, idealistas, materialistas… Onde germinavam os pressupostos da modernidade e das vanguardas artísticas que carreariam crises e ruturas. Aqui foi discípulo de Jean-Paul Laurens (1838-1921) e Benjamin Constant (1845-1902). Em 1899, viaja a Itália para um encontro com a cultura clássica, com os precursores do renascimento e dos grandes mestres: Giotto (1226-1337), Fra Angélico (1395-1455), Leonardo (1452-1519); Rafael (1483-1520)… e no regresso a França a participação medalhada com bronze na Exposition Universelle[2] de 1900. E como era habitual o desvio à Bélgica, geograficamente próxima, a experienciar um universo artístico tão particular. António Carneiro foca-se, assim, no trabalho, na aprendizagem, alheando-se da boémia e das problemáticas políticas e sociais, tal como o fizera e continuou a fazer no seu país, onde regressou após a exposição. Mesmo no contexto circunstancial de uma conjuntura tão densa e carregada de céleres e drásticas mudanças como o foi este fim de século e primeiras décadas do seguinte (rotativismo, queda da monarquia, 1ª e 2ª Repúblicas, 1ª Guerra, industrialização, movimentos sindicais, …). Interessavam-lhe as questões espirituais, filosóficas, literárias, plásticas, na busca de uma ética e de uma estética, onde ele encontrou a sua identidade como homem e como artista. “ […] Foi na simbiose espaço-símbolo de Pierre Puvis de Chavannes, no intimismo esfumado de Eugène Carrière e Auguste Rodin, na reflexão existencial e expressividade de Edvard Munch (1863 – 1944), nos salões, nas exposições, nas tertúlias, nos livros e no labor experimental incessante, que obteve os princípios doutrinários que pretendia” (Amorim, 2012, 61). Havia de voltar outras vezes a Paris, fonte da sua utopia, no esforço de saciar essa busca que o impelia para uma interioridade ardente, poética, metafísica, onde a obra escrita[3] traduzia em palavras o que a obra plástica materializava no traço do lápis ou na mancha do óleo, em temáticas religiosas ou profanas marcadas por profundo saudosismo e espiritualidade. No seu currículo registam-se outras viagens como as que fez ao Brasil, onde foi surpreendido pelo eclodir da 1ª guerra (1914-1918) outras medalhas[4], outras atividades, como a ilustração[5], a escrita ou a docência (professor na Academia de Belas Artes do Porto desde 1918). Em cada obra sua a singularidade de um espírito inquieto, de um impulso, de uma vertigem, que se impõem como um desígnio na sua vida. E como um círculo que se fecha, o sonho realizado no tão almejado ateliê (1925)[6], hoje Casa-Oficina António Carneiro, e a morte precoce da filha (1926), derradeira sombra a pairar sobre a luz, qual Divina Comédia de Dante, obra revisitada pelo pintor-poeta em 1928 em 42 desenhos, plenos de maturidade. Exatamente o ano no qual executa a sanguínea, o busto de mulher que agora se destaca. Em posição frontal, voltada a ¾ para a esquerda. Uma linha suave contorna-lhe o rosto, define-lhe as feições delicadas, harmoniosas. Um modelado ténue volteia-lhe as ondas do cabelo num penteado sugerido, para se diluir no apontamento do longo pescoço e do peito. Emana-lhe da boca uma subtil sensualidade e do olhar uma ânsia de tocar o intangível. Como se o peito desnudo lhe revelasse a alma e os olhos nos deixassem entrar num universo, profundo e intimo… “Fecundo retratista […] As sanguíneas, sobretudo lhe deram justa celebridade, e a leveza com que as esboçou, numa branda fusão de volumes, em «sfumati» sensíveis, definem bem a sua personalidade, interpretando as dos modelos, penetrando-as com inteligência e gravidade”. (França, 1966, 231). Representado nas coleções de vários museus e instituições, associado ao simbolismo português, distante dos paradigmas do naturalismo dominante, António Carneiro, erudito e místico foi como afirma Brandão (1938, 297-298, apud Amorim, 2012, 85) um astuto analista de Almas[7] charneira entre sopros coevos e únicos como Amadeu[8] ou Santa Rita[9], coartadas que foram, precocemente, as suas vidas.
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[1] Revista ligada ao movimento Renascença Portuguesa. A 1ª Série lançada em Dezembro d e1910-1911. A partir de 1912 – 2ª Série passa a designar-se Órgão da Renascença Portuguesa. Data a partir da qual assume a direção artística da revista.
[2] Onde participa com um auto-retrato, o retrato de Alfredo Coimbra e um estudo de cabeça a integrar o referencial tríptico A Vida.
[3] Autor da antologia de poemas Solilóquios, publicada no Porto em 1936.
[4] Recebe as medalhas de prata na Exposição Universal de Saint Louis (1904) e Exposição Internacional de Barcelona (1907).
[5] Imprensa: Ilustração Portuguesa, Límia, Águia, Atlântida, Contemporânea, Gente Lusa, Alma Nova, Labareda, Portucale, … Na literatura ilustra obras de António Nobre, Aarão de Lacerda, António Arroyo, António Botto, Jaime Cortesão, Raul Brandão, Teixeira de Pascoais, Eça de Queiroz, entre outros.
[6] Dádiva de Domingos Rufino, que perante este manteve o anonimato, exercendo o seu mecenato através de Oliveira Cabal. Constitui hoje a Casa – Oficina António Carneiro, aberta ao público desde 1973.
[7] Brandão, Júlio (1938) – Desfolhar de Crisântemos. Porto: Livraria Civilização Editora. pp. 297 e 298. apud Amorim, 2012, p 85.
[8] Amadeu de Sousa Cardoso (1887-1918).
[9] Guilherme de Santa-Rita (1889-1918).
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Busto Feminino
António Carneiro
1928
Desenho a sanguínea
Dim.: [Alt.] 38,5 x [Larg.] 29,5 cm
Legado de Ana Maria Pereira da Gama
Museu de Lamego, inv. 7820
Bibliografia
AMORIM, José Carlos de Castro (2012) – António Carneiro. Pluralidade e desígnios de um Ilustrador. Porto: Dissertação apresentada a Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Vol. I. Disponível em: António Carneiro – SIGARRA U.Porto – Universidade do Porto
CASTRO, Laura (1996) – António Carneiro. O universo no olhar. Matosinhos: Câmara Municipal de Matosinhos / Edições Afrontamento.
FRANÇA, José-Augusto (1967) – A Arte em Portugal no Século XIX, Vol. II, Lisboa: Bertrand Editora, pp. 228-233.
PAMPLONA, Fernando de (1943) – Um Século de Pintura e Escultura em Portugal (1830-1930), Porto: Ed. Livraria Tavares Martins, pp.172-178.
PAMPLONA, Fernando de (2000) – Dicionário de pintores e escultores Portugueses ou que trabalharam em Portugal. vol. II, 2.ª Edição, Barcelos: Livraria Civilização, pp. 53-55.
SANTOS, David (2001) – 1900-1940. Modernismo e Vanguarda nas coleções do Museu do Chiado, Lisboa: Instituto Português de Museus.
TAVARES, António Manuel Lopes (Coord.) (2011) – António Carneiro revisitado na Galeria de Benfeitores da Santa Casa da Misericórdia do Porto, Universidade do Porto. Disponível em: https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/19648/1/Ant%C3%B3nio%20Carneiro%20h%C3%A1%20110%20anos%20atr%C3%A1s.pdf
Georgina Pessoa | julho 2020