Virgem do Ó [ou da Expectação]
Mestre Pero
1340-1350
Calcário policromado
Proveniente do Hospital da Misericórdia de Lamego
Inv. ML 130
A imagem da Virgem do Ó é exemplo da grande devoção que o tema da Virgem grávida de Jesus após a Anunciação gozou em Portugal e em Espanha, sobretudo em tempos do gótico, apesar do culto se ter iniciado muito antes, no século VII, durante o X Concílio de Toledo. Foi nessa altura que foi decretada a celebração da Expectação da Virgem, a decorrer nos oito dias que precediam o nascimento do Menino.
O desfasamento temporal que há entre a origem do culto e a sua propagação poderá encontrar explicação na capacidade empática – como Paulo Pereira tão bem observou – que a arte gótica soube emprestar à iconografia da Expectação, pelo modo humanizado como representa a figura divina. Essa dimensão sensível da figuração da Mãe de Jesus viria mais tarde a ser encarada com desconfiança, o que explica também o facto de muitas dessas imagens, sobretudo a partir do século XVII, terem sido destruídas (enterradas ou mutiladas), por determinação da legislação sinodal da Igreja pós-tridentina, receosa da deturpação do divino que estas pudessem sugerir. Apesar do controlo que as autoridades religiosas exerciam para que se verificasse um rigoroso cumprimento das diretrizes de Trento, subsistiram entre nós numerosas esculturas da Virgem do Ó.
Datadas da primeira metade do século XIV, a maior parte está atribuída a Mestre Pêro ou tem claras afinidades com a produção deste escultor, de provável origem catalã. Responsável pela renovação da escultura coimbrã de Trezentos, foi o autor das Virgens do Ó da Sé de Coimbra (hoje, no Museu Nacional Machado de Castro, inv. MNMC 645) e do Museu Nacional de Arte Antiga e, entre outras, da arca feral de Isabel de Aragão, a rainha santa tumulada no Mosteiro de Santa Clara-a-Nova, em Coimbra.
De acordo com as características que definem a produção de Mestre Pero, o presente exemplar apresenta uma disposição do corpo levemente sinuosa, com o joelho direito ligeiramente avançado e fletido, deixando a perna esquerda em tensão, e um dos lados da anca mais elevado. O rosto é oval e tem um ligeiro duplo queixo, o nariz fino e narinas salientes. Olhos amendoados e a boca com os lábios levemente unidos, num figurino que em tudo se relaciona com os modelos da imaginária feminina francesa do séc. XIII e inícios do XIV. O rosto é emoldurado por cabelos que definem madeixas onduladas, com caracóis pronunciados, junto às orelhas e perfurados pelo uso do trépano. As mãos apresentam os dedos cilíndricos e alongados e a parte superior algo aplanada. Usa véu curto e túnica que lhe envolve os pés pregas requebradas e cingida por um cinto que sugere os verdadeiros, executados em couro e ornamentados com pequenas chapas metálicas e pedraria. Sobre a túnica usa um manto, que pende no peito com um alfinete quadrilobado. A policromia é uma constante nas imagens da oficina de Mestre Pero, ainda que existam obras do mesmo escultor que possam nunca ter sido policromadas. Neste caso, mantendo-se a imagem colorida e, desse modo, mais naturalista, também é verdade que, devido aos repintes, estas camadas de preparo e de pigmentos dificultam a leitura mais apurada dos elementos escultóricos, tal como acontece em tantas imagens deste escultor e sua oficina. Realizados em data incerta, os repintes devem ter ocorrido em finais do século XVIII ou inícios do seguinte, pelas características da laçada, pintada junto ao pescoço, que evoca a joalharia do reinado de D. Maria I.
De origem incerta, a sua presença em Lamego, deve estar relacionada com a nomeação de D. Frei Salvado Martins para a catedral lamecense, onde governou entre 1331-1349. Frade franciscano, de quem se refere a singular devoção à Virgem, foi, igualmente, uma figura preponderante na corte de Isabel de Aragão, a quem coube, enquanto seu confessor, redigir o testamento e assistir na morte a rainha (1336), sendo possivelmente de sua autoria a primeira biografia de Dona Isabel, escrita pouco tempo depois do seu desaparecimento. Como é sabido, foi justamente com o intuito de executar o túmulo da que viria a ser Santa Isabel (c. 1330, ainda em vida da rainha), que mestre Pêro veio para Coimbra. Posteriormente, diversas notícias sobre o Hospital da Misericórdia de Lamego permitem acompanhar a possível trajetória desta imagem, desde o século XVI até à sua incorporação no museu, na década de 30 do século XX. Sobre o primitivo hospital, fundado em 1519, sabe-se que tinha capela e que a mesma foi restaurada em 1597, a expensas de D. Filipa Rodrigues do Amaral, que a dedicou a Nossa Senhora da Anunciação, sendo admissível que a ligação da escultura a esse estabelecimento remonte a essa época. Mais tarde, uma escritura de obrigação de óbito de 1756, que o provedor e irmãos da Santa Casa da Misericórdia de Lamego se obrigaram a cumprir por alma do bispo D. Frei Feliciano de Nossa Senhora, informa-nos que a imagem se encontra na capela do mesmo hospital. Mas, por essa altura, já este passara para o novo edifício, construído para o efeito, em 1727, no terreiro da Sé, possivelmente no mesmo local onde o anterior se encontrava erigido. Dos três mil cruzados com que o piedoso D. Frei Feliciano de Nossa Senhora dota a Santa Casa da Misericórdia, e que a escritura atrás menciona, parte destinava-se para o azeite da lampeda que estará todo o dia e toda a noite aseza e no dia da Nossa Senhora da Espetasam na capella donde ella está colucada a dita Senhora se lhe dirá huma missa pella sua alma todos os annos enquanto o mundo fôr mundo.
A nota acima referida constitui um testemunho muito interessante, que invalida algum pudor que ainda pudesse subsistir, em meados do século XVIII, em relação ao realismo que carateriza a iconografia da Expectação. Recorde-se que ainda no século anterior, as constituições sinodais do bispado de Lamego (1639) ordenavam que fossem enterradas nas igrejas as imagens com abufos ou erros contra a verdade dos Mysterios Divino.
No século XIX, é inaugurado o novo hospital da Santa Casa da Misericórdia de Lamego, no dia 15 de maio de 1892, dez anos depois do rei D. Luís I ter assentado a primeira pedra para a sua construção. Diz-se que, nesse mesmo dia, apareceram os doentes vindos do velho. A escultura da Virgem do Ó acompanhou a mudança, e durante vários anos foi venerada com grande devoção, em altar próprio, na enfermaria das parturientes do novo hospital. Após vinte anos de aturados esforços, o primeiro diretor do Museu de Lamego, João Amaral, consegue, por fim, fazê-la integrar a coleção do museu. Uma vez desafeta ao culto, não foi fácil destituir-lhe o conteúdo sagrado ou religioso que lhe era inerente, continuando por vários anos a ser procurada para veneração por parturientes com a intenção de lhe acenderem velas ou lamparinas.
Escultura da Virgem do Ó no altar do Hospital da Misericórdia de Lamego, c. 1906. In A. da Rocha Brito, “A Gestação na Escultura Religiosa Portuguesa. Nossa Senhora do Ó”. O Tripeiro, 5.ª Série, Ano I, n.º 9, janeiro de 1946. Fotografia de Manuel Monteiro/reprodução: Museu de Lamego – DRCN. Alexandra Pessoa.
Bibliografia
FALCÃO, Alexandra (2015) – «Das obras tôscas e inclassificáveis ao admirável retábulo que o consagrado escultor Macário Diniz ofereceu ao Museu da sua terra. História de uma coleção». A Glorificação do Divino. Escultura barroca do Museu de Lamego. DRCN – Museu de Lamego, pp. 10-18.