Liteira
Portugal, último quartel do séc. XVIII
Madeira dourada e policromada, ferro, bronze, couro e têxtil
Proveniente do antigo paço episcopal de Lamego
Inv. ML332
Fotografia | Paula Pinto
Descendente direta da lectícia romana, as liteiras nunca deixaram de ser utilizadas até finais do século XIX, o que demonstra bem a sua eficácia como meio de transporte. Com uma caixa de dois lugares, frente a frente e transportada por duas mulas atreladas, na extremidade dianteira e traseira, a dois longos varais fixos nas ilhargas laterais, para suspensão do peso da caixa e dos seus ocupantes, as liteiras foram-se alterando, mais a nível decorativo, acompanhando o gosto das várias épocas e dos fabricantes, do que no seu aspeto formal. O seu grande sucesso deveu-se ao facto de permitir deslocações cómodas e de relativa rapidez pelas ruas estreitas e sinuosas das cidades ou em longas distâncias percorridas por caminhos tortuosos. De tal modo vulgarizado o seu uso, em determinadas épocas, o número excessivo de liteiras nas cidades, e o luxo que atingiram, levaram a que reis fossem obrigados a decretar proibições para tentar controlar a sua mobilidade. Em 1626, o rei Filipe II determina que “nenhuma pessoa ande na cidade de Lisboa em machos ou mulas de sela, nem liteiras, salvo se for de viagem”, sob a pena de apreensão do transporte por meirinhos e alcaides. Apenas podiam andar de liteira, os que tivessem licença e os eclesiásticos, desembargadores, médicos, corregedores, juízes, ou seja, aqueles, cujas ocupações obrigavam a frequentes deslocações. Tanto liteiras como cadeirinhas, além de serem um transporte essencialmente prático, integravam também os cortejos, sobretudo no transporte de membros do clero.
Usado como meio de transporte por sucessivos bispos de Lamego, as armas gravadas na traseira, denunciam o bispo de Lamego D. Manuel de Vasconcelos Pereira (1772-1786), como primeiro proprietário.
Com uma gramática decorativa filiada nos figurinos rococó, a liteira apresenta-se exuberante, vermelha e dourada, com o tejadilho de couro negro, recortado em graciosa e típica curvatura e o interior forrado a damasco vermelho. Os painéis da caixa são decorados, com cercaduras de volutas, concheados e frisos dourados, e paisagens a vermelho e ouro, numa reminiscência da pintura imitante do acharoado, muito em voga nos reinados de D. João V e D. José I.
A propósito de um rol e recibo dos 27 dias, que andou a liteira em 1824, dado a conhecer no jornal Beiradouro (15-10-1938), por João Amaral, são suas as seguintes considerações:
Estou a vê-la [a liteira] marchar pelos caminhos velhos da Diocese, entregue ao passo cadenciado e bamboleante das mulas ou dos machos, que o boleeiro chicoteava e incitava à marcha com o seu hiú gutural, enquanto o Senhor Bispo, pitadeando-se, conversava familiarmente com o fâmulo ou secretario que lhe ficava vis-a-vis, para o tempo lhe parecer mais curto e o atrito suplicante sentido sobre os rins se lhe afigurar menos doloroso. […] Tudo isto ocorreu, nítido e evocativo, no meu espírito repassado de emotiva sensibilidade pelas coisas dos antigos tempos ao olhar para esta liteira, que neste momento, tenho aqui, ao meu lado…