Integra a doação de António Metelo Seixas (2013) um desenho a carvão s/papel do portuense António Amadeu Conceição Cruz (1907-1983). Artista da cidade, nas múltiplas aceções, aqui nasceu, viveu e morreu. Cada obra sua é um hino, um poema, onde habita o seu olhar singular. “De todos os pintores do século XX, António Cruz foi decerto aquele que melhor soube entender a alma da cidade”, afirma Bernardo Pinto Almeida (Apud Sousa, 2008). Resistiu ao impulso inicial para as artes, para cumprir o desejo dos pais, que não viam no seu exercício o meio de construir uma vida confortável e segura, optando, após a conclusão do ensino primário, pela frequência do curso de condutor de máquinas, na Escola Industrial Infante D. Henrique, no Porto (1920). Compartimentado que estava o sistema educativo, nessa dicotomia entre ensino profissional e superior, com os liceus a permitir o acesso à universidade e as escolas comerciais e industriais voltadas para a aprendizagem técnica, num esforço de industrializar o país e combater velhos atrasos. Foi pintando o sonho nas franjas e recantos da cidade, traduzidos nos trabalhos com que participou nas exposições nas Termas de Vizela e no Casino da Póvoa. Nesta última, surpreendido por turista alemão que adquiriu todas as suas obras. Certamente, o sucesso obtido o consciencializa da importância que a arte tinha na sua vida. Tornou-se urgente o regresso à escola, aprender mais, melhorar. E porque os meios económicos eram escassos e a autoconfiança para enfrentar a família, ainda insuficiente, candidata-se a uma bolsa do Legado Ventura Terra. Em 1930, matricula-se na Escola de Belas Artes do Porto. Foram seus professores, em pintura: Acácio Lino (1878-1956); Joaquim Lopes (1886-1956); Dórdio Gomes (1890-1976), em escultura: Pinto do Couto (1885-1945) e Barata Feio (1890-1990). No espírito contestatário da juventude expõe com os grupos “Independentes” e “Mais Além”, constituídos por alunos da ESBAP[1].
A década de 30 constituiu uma alavanca decisiva no percurso do artista e na sua prática artística. Opção sentida como um imperativo, de certa forma assumida, para si próprio e para a família, que apenas teve conhecimento dela após a divulgação na imprensa da atribuição do Prémio José Rodrigues Júnior (1932) e do seu reconhecimento público. A persistência das dificuldades económicas, agravadas pela morte do pai (1934), motiva-lhe o recolhimento numa estada em Ponte da Barca, onde o exercício da pintura lhe preencheu os dias. Situação mitigada pelo abaixo-assinado de colegas e amigos, endereçado à Direção da Escola, solicitando-lhe autorização para este lá continuar os estudos, bem como o pedido de apoio pecuniário à Câmara Municipal do Porto, que então lhe atribuiu uma mensalidade de trezentos escudos (1935). A esta se veio a associar a Junta de Freguesia do Bonfim. Neste grupo de amigos contam-se entre muitos Domingos Alvarez (1906-1942) e Guilherme Camarinha (1912-1994). Viaja para a Grã-Bretanha (1937), realiza a primeira exposição individual no salão Silva Porto (1939), preito dos amigos, com repetição na SNBA[2], em Lisboa, a pontuar o ano em que concluiu o curso de Pintura. Em 1940 o Instituto de Alta Cultura atribui-lhe uma bolsa para aprofundamento da técnica da aguarela. Apesar de alguns contratempos com o Estado Novo, perante os quais destacadas figuras, como Reinaldo dos Santos, se apressaram a defender, sendo as questões com o regime ultrapassadas, vindo a participar em várias exposições do SNI[3] promovidas por António Ferro (1895-1956). Contexto no qual recebe, em 1947, o Prémio José Tagarro (desenho) e Roque Gameiro (aguarela) e em 1948 o Prémio Teixeira Lopes (escultura). Em 1958 vai lecionar na Escola de Artes Decorativas de Soares dos Reis e, em 1963, passa a integrar o corpo docente da Escola de Belas Artes do Porto, como professor agregado de Desenho.
A arte de António Cruz encontrou na aguarela a sua expressão mais elevada, criando composições de subtis gradações tonais, estruturadas em ténues esboços anotados a pincel. Um ângulo da Sé, o casario da Ribeira, as pontes que ligam as duas margens do Douro, o recanto do jardim … pálidas atmosferas de neblinas, de ambientes sombrios revelados pela luz difusa que penetra e desnuda cada pormenor da cidade. Foi este olhar que chamou à atenção de Manuel de Oliveira quando em 1956, terminada a formação nos laboratórios da AGFA (Alemanha), para estudar a cor no cinema, realiza o documentário “O Pintor e a Cidade”, onde o protagonista é o próprio António Cruz. Fora do seu ateliê, envergando a sua habitual gabardine, munido do cavalete e das aguarelas, vai percorrendo a cidade, seguido passo a passo pelo realizador. Construção de um diálogo em contraponto entre a objetiva da câmara e a visão estética do artista. A merecer o aplauso geral da crítica no país, repetido em Paris e Veneza e a ganhar a Harpa de Ouro no festival de Cook (Irlanda), primeiro prémio internacional do cineasta. Em Portugal, o SNI atribuiu-lhe o prémio para a melhor Fotografia. Em 1982, já bastante fragilizado acompanha a exposição que Armando Alves, José Rodrigues e José da Cruz Santos lhe organizam na Casa do Infante (Porto)[4]. Esta teria um surpreendente impacto na opinião pública, a julgar pelos milhares de visitantes e pelas entrevistas, excecionalmente dadas pelo artista, que se considerava a si próprio um estóico, asceta por natureza.[5] António Cruz morre no ano seguinte. Da notícia de que dá conta a imprensa, às exposições após realizadas, testemunha-se a expressão de um crescente interesse, de estudiosos e do público, pelo percurso e pela obra deste artista. Em 1985 a Galeria Nazoni abre com uma exposição de aguarelas e desenhos seus. Revisitado no início do milénio (2007) na exposição realizada pela Cooperativa Árvore em parceria com o MNSR[6] com apoio da Câmara Municipal do Porto. Em 2015 foi a Fundação Calouste Gulbenkian (Lisboa) a receber a arte de António Cruz. Representado no acervo do Museu de Lamego pela obra que agora se divulga. A apreensão mística da cidade pelo seu traço particular, expressão da sua melancolia e leveza. Registo de uma poética que atravessa o espaço urbano e lhe devolve uma identidade criada e sentida pelos que o habitam, num misto de espiritualidade / materialidade. O solitário cruzeiro que se ergue sobre uma base escalonada, ladeado por breves apontamentos arquitetónicos, o esboço de uma fonte, símbolo de vida, e a alameda, cujas árvores se agigantam, qual elo envolvente, protetor, garante de uma intemporalidade que contraria a morte. Como a obra do artista, através da qual ele se faz presente.
[1] Escola Superior de Belas Artes do Porto. Tomaram como pretexto a homenagem a Marques de Oliveira, contestando-a, aludindo ao carácter tradicionalista do ensino praticado pela instituição.
[2] Sociedade Nacional de Belas Artes.
[3] Secretariado Nacional da Informação.
[4] Lançamento do álbum “O Pintor e a Cidade” com texto de Agustina Bessa-Luís. Realização de concurso com igual designação pelo jornal “O Comércio do Porto”.
[5] Em o Primeiro de Janeiro, 25 -11-1982 (Apud Castro, 2012).
[6] Museu Nacional Soares dos Reis
BIBLIOGRAFIA
– CASTRO, Laura (2012) – Na cidade, no cinema e na arte: Carlos carneiro, António Cruz e António Sampaio. In: Sousa, Gonçalo de Vasconcelos (Coord.) – Actas do I Congresso: O Porto Romântico. Vol. I. Porto, ed. Universidade Católica, pp. 287-302.
– Exposição Antológica de António Cruz. (2015). e-Cultura.pt, Centro Nacional de Cultura. Disponível em: https://www.e-cultura.pt/evento/502. [Consultado em: julho – setembro /2020.]
– SOUSA, Paulo Teixeira de (2008) – “O Pintor e a Cidade”. In A Pagina da Educação. Nº174. Jan de 2008. Disponível em: https://www.apagina.pt/?aba=7&cat=174&doc=13005&mid=2 [Consultado em: julho – setembro /2020.]
– FRANÇA, José-Augusto (1985) – A Arte em Portugal no Século XX. 1911-1961. Venda Nova: 2ª ed., Bertrand Editora.
– FRANÇA, José-Augusto (1991) – O Modernismo na Arte Portuguesa. Biblioteca Breve. Nº 43. Lisboa: 3ª ed. Instituto de Cultura e Língua Portuguesa / Ministério da Educação.
– PAMPLONA, Fernando de (1943) – Um Século de Pintura e Escultura em Portugal (1830-1930). Porto: Livraria Tavares Martins.
– PAMPLONA, Fernando de (1987) – Dicionário de Pintores e Escultores Portugueses ou que trabalharam em Portugal. Vol. II. Barcelos: 2ª ed., Civilização Editora, p.175.
Georgina Pessoa | outubro 2020