Retrato de Camilo Castelo Branco em destaque no mês de abril
“Os dias prósperos não vêm por acaso. São granjeados, como as searas, com muita fadiga e com muitos intervalos de desalento” Camilo Castelo Branco[1].
Como o tempo que corre, espelhado nas palavras de Camilo (1825-1890), a escolha de abril a recair sobre o seu retrato póstumo, pintado a óleo sobre madeira, em 1918, por Alberto Rodrigues Aires de Gouveia (1867-1941). Peça que integrou a prestimosa doação do Dr. Joaquim d’ Assunção Ferraz de 1969.
O autor nasceu no seio de uma abastada e aristocrática família portuense, com antiga ligação ao comércio e exportação de vinhos. O pai, Joaquim Frutuoso Aires de Gouveia Osório, abriu em 1853 uma empresa de comissões na capital inglesa, com sucursal em Liverpool, em colaboração com a exportadora familiar. Quando regressou, em 1861, passou a integrar a António Caetano Rodrigues & C.ª do sogro, pela qual Aires de Gouveia, ainda jovem, fez uma breve passagem. Porém, eram outros os interesses que a esmerada educação[2] e a requintada sensibilidade lhe ditavam. Ao imenso gosto pela leitura, associou-se o da música, que desenvolveu com o violinista e compositor Augusto Marques Pinto (1838-1888), e a frequência de espetáculos como os que ocorriam no Orpheon Portuense. Também a escrita e as artes cénicas faziam parte do seu quotidiano. «No Porto, em casa da família Ayres de Gouvêa, realizou-se na sexta-feira passada, um esplêndido baile, com a assistência de tudo o que há de mais distinto na primeira sociedade portuense. Representaram-se duas comédias, sendo uma delas […] escrita expressamente para esta festa pelo sr. Alberto Ayres de Gouvêa»[3]. (Allen, 1969, 723). Também Teixeira Lopes (1866-1942) apreciava os serões na casa do pintor «Gostei imenso de o ver representar, gostei muito da sua comédia, e achei a festa esplendidíssima! […]». (Lopes, 1902, Apud Allen, 1969,724). A sua paixão maior foi sempre a pintura, já apontada nos rabiscos de criança. Avesso aos exames e constrangimentos da academia, desenvolve os seus conhecimentos pictóricos com Marques Oliveira (1853-1927). A sua formação artística, cultural e humanística complementa-a com o trabalho de campo de que se revestiram as muitas viagens feitas pela Europa, algumas na companhia do mestre. Afirmou Júlio Brandão “«Ayres de Gouvêa pertence ao grupo dos artistas pessoais, que fizeram das suas telas o espelho mágico da sua alma… Aos vinte anos partiu com Marques d’O1iveira, seu Mestre e Amigo, a jornadear por terras estranhas – vendo museus, estudando processos, extasiando-se diante dos grandes mestres europeus.” (Brandão, 1941, Apud Allen,1970,153). Nestes Grands Tours são muitos os contactos, os conhecimentos e as vivências que lhe enchem e enriquecem o espírito. Síntese vertida na correspondência[4] para amigos, familiares e especialmente para a mãe, dá-nos um conhecimento fiel da sua personalidade e percurso. Na primeira viagem que realiza em 1888 à Alemanha, com Alfredo Allen, não é parco nos adjetivos com que qualifica a residência de Frederico II “Grandioso, extraordinário, deslumbrante, assombroso…” (Gouveia, 1888, Apud Allen, 1969,735). Palácios, museus, espetáculos, passeios…descreve tudo o que vê e experiencia. Interiores, enquadramentos, paisagens, atividades. Regista e fotografa. Nesta e nas muitas viagens que realizou. “No último dia tive de rejeitar dois convites – para ir à noite a casa do Ministro e para um almoço dado pelos brasileiros ao Bispo de Olinda. […] As manhãs – hoje e ontem – passei-as nos museus. Pintor em toda a linha…Como queria saber – e saber dizer-lhe – o que sinto […] Hei-de levar a fotografia, querida Mãe….».”(Gouveia, 1903, Apud Allen, 1970, 112-114). Já em Milão depois de passar por Veneza, antes do regresso a Paris: “Hoje gastei a manhã na catedral e nas pinturas. […] Amanhã, logo de manhã vou ver a «Ceia,» de Leonardo da Vinci, que é uma das maravilhas de Milão»” (Gouveia, 1903, Apud Allen, 1970, 119).
A morte precoce do pai, tinha ele apenas 11 anos, seguida da dos avós, materno e paterno, enlutaram pesadamente a família e marcaram-lhe a infância. E no confronto entre a obrigação da gestão dos empreendimentos familiares e do sonho do artista, acabou por abraçar este último. Com total dedicação, mas também a timidez que lhe eram características.
Nas temáticas de índole religiosa que marcam as primeiras obras, ou, nas posteriores, mais mundanas, está subjacente o traço seguro, o domínio da cor e da luz e a construção de harmoniosas composições. Povoadas de figuras femininas em poses subtis, nostálgicos interiores, decorativos arranjos florais ou frutos, naturezas mortas e paisagens. No retrato “Ayres de Gouvêa afirmou-se um mestre, não apenas pela aguda intuição psicológica, mas também […] pela suave modelação da máscara, pela delicadeza dos toques de luz […] Em busca do essencial, depurava a realidade, mas não lhe fazia perder nunca o seu carácter.”[5] (Pamplona, 1941, Apud Allen, 1970, 176). Executadas com os óleos da casa Winsor & Newton, importados de Inglaterra ou nos pastéis «Henri Roché», ou, casualmente, «Bourgeois ainé», vindos de Paris. Dos muitos retratados por Aires de Gouveia, conta-se o tio António[6], bispo de Betsaida, arcebispo de Calcedónia. Destacado intelectual, no sui generis percurso consta a sua ação política e participação maçónica. Aos quatro retratos que dele faz, não é alheia a forte ligação entre ambos, forjada nos períodos passados na Quinta da Granja[7]. Já noutro contexto surge este retrato de Camilo Castelo Branco. Realizado em 1918, 28 anos depois da morte do escritor e dois da morte do tio. A amizade dos dois retratados cresceu entre os jogos de damas e gamão e os confrontos literários que então animavam os botequins do Porto, como o “Botequim do Frutuoso”[8] “o preferido pela juventude e pelos intelectuais” (Duarte, 2019, 275-276) e o Café Guichard[9]. “Uma geração jovem reunia-se nesse botequim para discutir literatura e política ou para fazer crítica social. Ora foi nessa ambiência que o intelectual conheceu Camilo Castelo Branco. O encontro na tertúlia então formada esteve na origem da criação de laços de amizade entre ambos.” (Neto, 1989,176). Os poemas satíricos (1849) As Comendas, da autoria do clérigo e Os Ratos da Alfandega de Pantana do poeta, são o início da mútua contestação, tornada pública nas colunas dos jornais Ecco e Jornal do Povo. Mas “à amizade criada nas tertúlias, sucedeu-se um sentimento de ódio que veio a perdurar no decurso das décadas seguintes.” (Neto, 1989, 377). Acreditamos que esta disputa tenha servido mais de estímulo criador que de ódio, já que “Camilo recorda o velho conviva em nota marginal na Bulla da Santa Cruzada quase quarenta anos depois «António Ayres de Gouveia foi um dos amigos que tive na mocidade. É o único que vive”. (Ricardo Jorge, Apud Neto, 1989, 377)[10]. Continua presente, na obra que deixou, nos retratos do pintor, na “figura de Libório, do romance A Queda de um Anjo (Neto, 1989, 378) de Camilo. Tal como o escritor, cuja vida pontuada pelo infortúnio, amores e desamores, lhe marcaram o temperamento instável e amargo, assim como a inspiração e a escrita: “homem […] de magreza esquelética, rosto oval, a palidez em pessoa, olhos com o negrume da noite, mas chispando faíscas, bigode ramalhudo …” (Malpique, 1970, 20). Assim o retrata, também, Aires de Gouveia, neste busto feito provavelmente a partir de uma prova fotográfica. Sobre um fundo quase monocromo, o traje sugerido em apontamento. Uma luz coada revela-lhe o rosto, o olhar penetrante, impele-nos para o seu universo, espaço íntimo, intemporal. Ponte entre a realidade e o sonho construída pelo artista: «As coisas que vejo, valem muito mais pela ideia que acordam em mim, do que pelo que são; posso muitas vezes dizer que as não vejo «na realidade»: — sonho-as!». (Gouveia, 1898, Apud Allen, 1969, 731). Imagem atual pela urgência de nos reinventarmos, no espaço social ou privado, onde o sonho possa ser a essência da realidade.
[1] Obras – Volume 31 – Página 89, Camilo Castelo Branco – Parceria A.M. Pereira, 1965.
[2] Frequentou os: Colégio Minerva, Colégio de São Carlos, Colégio Inglês de Nossa Sra. da Providência e teve aulas privadas com ilustres como Basílio Teles (1856-1923), entre outros.
[3] Jornal “Novidades”, 20 de Janeiro de 1896, Lisboa.
[4] Correspondência publicada em 1969-70 por Alfredo Ayres de Gouvêa Allen (1900-1975), filho de Alberto Rebelo Allen (1856-1936), 2º Visconde de Villar d’Allen e sua irmã Felismina Rodrigues Aires de Gouveia (1889-1978).
[5] Pamplona, Fernando de – “Aires de Gouvêa. Pintor de Elegâncias”. In «Diário da Manhã», 23 de outubro de 1941.
[6] António Frutuoso Aires de Gouveia Osório (1828-1916). Estudante da Universidade de Coimbra onde se doutorou em Direito e Teologia, maçom, foi ministro (1865, 1895) e par do reino (1880). É particularmente relevante a obra A reforma das cadêas em Portugal, para a reforma penal em Portugal e a abolição da pena de morte.
[7] Quinta adquirida em 1860 pelo avô, Frutuoso Ayres, aos frades cruzios, passa posteriormente para a posse do tio.
[8] Propriedade do avô de Alberto Aires de Gouveia.
[9] Localizado na praça de D. Pedro no Porto, abriu em 1883.
[10] Ricardo Jorge (s/d) – Camilo e António Ayres. Seguido do poema «As Comendas» Lisboa, Emprêsa Literária Fluiminense, Ldª. s/d, p. 1-7.
BIBLIOGRAFIA
ALLEN, Alfredo Ayres de Gouveia (1969) – “Alberto Aires de Gouveia: pintor portuense”, In: «Boletim Cultural». Porto: Câmara Municipal. Vol. 32, fasc. 3-4, p. 711-808. Disponível em: http://arquivodigital.cm-porto.pt/Conteudos/Conteudos_BPMP/P-B-2035/P-B-2035_PDF/BPMP_P-B-2035_V32F3-4_Set-Dez1969.pdf [Consultado: março de 2021].
ALLEN, Alfredo Ayres de Gouveia (1970) – “Alberto Aires de Gouveia: um pintor portuense: notas para uma biografia”, In: «Boletim Cultural». Porto: Câmara Municipal. Vol. 33, fasc. 1-2. Disponível em: http://arquivodigital.cm-porto.pt/Conteudos/Conteudos_BPMP/P-B-2035/P-B-2035_PDF/BPMP_P-B-2035_V33F1-2_Mar-Jun1970.pdf [Consultado: março de 2021].
ANTIGOS ESTUDANTES ILUSTRES DA UNIVERSIDADE DO PORTO, Alberto Aires de Gouveia. Disponível em: https://sigarra.up.pt/up/pt/web_base.gera_pagina?p_pagina=antigos%20estudantes%20ilustres%20-%20alberto%20aires%20de%20gouveia [Consultado: março de 2021].
ANTIGOS ESTUDANTES ILUSTRES DA UNIVERSIDADE DO PORTO, Camilo Castelo Branco. Disponível em: https://sigarra.up.pt/up/pt/web_base.gera_pagina?p_pagina=antigos%20estudantes%20ilustres%20-%20camilo%20castelo%20branco [Consultado: março de 2021].
DUARTE, Rui Manuel da Costa Perdigão da Silva Fiadeiro (2019 – “Cafés Históricos do Porto: a aventura sedentária”. In Actas do 2º Colóquio “Saudade Perpétua” – Arte, Cultura e Património do Romantismo. Faculdade de Letras da Universidade de Porto, pp. 243-306. Disponível em: file:///E:/Transferencias_2019/Caf%C3%A9s%20Hist%C3%B3ricos%20do%20Porto%20a%20aventura%20sedent%C3%A1ria%20(10).pdf
José Frutuoso Aires de Gouveia Osório. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Frutuoso_Aires_de_Gouveia_Os%C3%B3rio [Consultado: março de 2021].
MALPIQUE, Cruz (1970) – “Camilo (Aspectos do seu retrato moral e psicológico) ”, In: «Boletim Cultural». Porto: Câmara Municipal. Vol. 32, fasc. 3-4 (1969), p. 20-77. Disponível em: http://arquivodigital.cm-porto.pt/Conteudos/Conteudos_BPMP/P-B-2035/P-B-2035_PDF/BPMP_P-B-2035_V32F3-4_Set-Dez1969.pdf [Consultado: março de 2021].
MENDES, Nuno Fernandes Ferreira (2012) – Cafés Históricos do Porto na demanda de um Património Ignoto. Dissertação de mestrado apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto.Disponível em: https://repositorio-aberto.up.pt/handle/10216/66775?locale=pt [Consultado: março de 2021].
NETO, Vítor (1989) – “A. Aires de Gouveia: da Ideologia Humanitária ao Regalismo Liberal”. In Revista de História das Ideias. 11.Instituto de História e Teoria das Ideias da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, pp. 373-443. Disponível em: file:///E:/Transferencias_2019/20214817482550outfile.pdf [Consultado: março de 2021].
Georgina Pessoa | abril 2021