Bianca Capello | Faz parte do legado de Ana Maria Pereira da Gama (2013), um óleo sobre tela datado de 12-6-1902, assinado no canto inferior direito: Sohpia. Trata-se de uma cópia de Juana Romani, original realizado pela pintora em 1892, onde retrata em busto Bianca Capello. De origem italiana, proveniente de Veletri[1] onde nasceu em 1867, com o nome de Giovanna Carolina Carlesimo, com dez anos de idade emigra com a mãe e o companheiro desta, Temistocle Romani, para Paris. Cidade luz, cosmopolita, onde se afirma uma burguesia possidente, sedenta de afirmação, inovação e progresso, que circula nos grandes bulevares, frequenta os cafés e os espetáculos, que se revê nos utópicos planos de Haussmann[2], e que a construção da Torre Eiffel (1889) evoca. Clientela que alimenta um intenso mercado, desde logo ligado ao consumo de produtos de luxo, promovido pelas novas elites, que alia a fotografia como arte dominante, e as emergentes artes gráficas e publicidade, estimulando as academias, os salões e a promoção das grandes Exposições Universais. Contexto onde se afirmam os movimentos modernistas, se fermentam vanguardas nas tertúlias de clubes e ateliês, onde convergem as ciências, as letras e as artes. É neste frenético ambiente que a pequena Giovanna se faz mulher e se metamorfoseia em Juana Romani. Num universo predominantemente masculino, dificilmente acessível à mulher, à semelhança de muitas jovens emigrantes, cedo começa a trabalhar como modelo. Com 15 anos de idade (1882) posa para Alexandre Falguière (1831-1900), em 1884 vemo-la representada nas obras de Jean-Jacques Henner (1829-1905) e finalmente de Ferdinand Roybet (1840-1920). Às características físicas, reveladoras de uma expressividade provocante, que emana do seu corpo sensual e do rosto de tez branca, cabelos ruivos, pequenos lábios vermelhos, olhos castanhos e intensos, associa uma personalidade carismática, jovial e determinada. A sua beleza particular seria imortalizada nos muitos retratos e nas obras destes artistas, nos clichés dos fotógrafos, nas muitas imagens publicitárias a que emprestou a sua imagem. Como Les Parfuns Naturels de Lenthéric ou o vinho Mariani, desenvolvido por Ângelo Mariani (1838-1914) integrando o Álbum Mariani [3] da sua chancela.
Foi no convívio dos artistas para quem posou e no vasto círculo de amigos com quem convive, que o seu talento inato para o desenho e para pintura se desenvolve, ultrapassando as limitações que o rígido sistema académico lhe impunha. “el modelo educacional de la academia, el cual, en Francia especialmente, era casi la única llave del éxito. […] impensable para las mujeres, por supuesto”[4] (Fernández, 1991,210). Como alternativa frequenta, a Academia de Filippo Calarossi (1841-1906) e, a partir de 1887, o “Atelier des dames” que Henner dirige com Carolus-Duram (1837-1917). O sucesso que Romani obteve como modelo, colaborando com os mestres mais conceituados, manifesta-se também na fulgurante carreira da artista. Em 1888 expõe, pela primeira vez, no Salão organizado pela Sociedade de Artistas Franceses, onde a sua presença foi uma constante até 1904, com o aplauso e admiração do público e dos colegas, onde encontra muitos seguidores e a atenção dos críticos que a mencionam entre os melhores.
«Mlle Juana Romani peint maintenant avec plus de souplesse et d’éclat que son maître Roybet lui-même…»[5]. Ao conhecimento amadurecido através de uma observação atenta associa o gosto pelos clássicos do renascimento italiano e pelos pintores do século de ouro espanhol, influências que absorve e transporta para as suas obras. Classicismo, romantismo e modernismo cruzam-se na sua obra atribuindo-lhe uma identidade própria. Nos retratos femininos, temática abrangente na sua obra, destacam-se as muitas mulheres que escolheu pintar. Com enquadramento mitológico ou histórico como Salomé e Judith, Leonora d’Este, ou Bianca Capelo, ou meras raparigas como Jovem oriental, Tizianella, Angélica…. as mulheres de Juana Romani são o repositório de um arquétipo feminino e de uma narrativa onde ela se revê. No corpo, na atitude, no olhar que repetidamente nos fixa, nos questiona e nos interpela, de forma desafiadora. De seios desnudos, ou mostrando apenas os ombros, os corpos envoltos em pesados brocados, assumem a supremacia do espaço. Ora se fundem em fundos neutros ora se destacam num cromatismo vibrante, exibindo liberdade poética, uma androginia profundamente sensual. Muito apreciados e copiados por artistas e amadores, são notícia nos jornais, ocupam as capas de revistas como a L’Art Francais. O nº 268 de 11 de junho de 1892 foi justamente preenchido com a sua Bianca Capello.
Foi uma das poucas artistas retratadas por Edmond Bernard (1838-1907) para a série “Artistes Chez eux“, de 1892, revista Paris Noël, com artigos assinados pelo diretor, considerado crítico de arte Gustave Goetschy (1846-1902) e grande admirador de Juana. A câmara do fotógrafo fixa na albumina a pintora no interior do ateliê que partilha com o seu mestre e companheiro Ferdinand Roybet. À sua frente, sobre o cavalete, a tela já emoldurada com a sua Bianca Capello. Nobre veneziana onde nasce em 1548, da fuga para Florença com o seu amor Pietro Bonaventuri, à sua relação e casamento com Francisco I de Médici, a sua vida marcada pela paixão, intriga e poder terá um fim trágico, com a sua morte e de Francisco, supostamente por envenenamento[6], em outubro de 1587. A história de Bianca inspirou dramaturgos e artistas e a sua imagem foi perpetuada por vários pintores do seu tempo como Alessandro Allori. Juana Romani despoja a grã-duquesa das vestes de aparato e das joias, liberta-lhe o cabelo cobre-lhe o corpo com um largo vestido em tons de verde e amarelo. Os botões sugerem firmais…e o olhar voltado para baixo, remete-nos para uma interioridade intensa e ambígua.
A luz fulgurante de Romani, mulher e artista aceite inter pares, respeitada e amada, extinguir-se-ia de forma inesperada. “…il passaggio in diverse cliniche determinano la fine di Juana che muore il 13 giugno 1923 nella più assoluta dimenticanza e abbandono. Sarà Federico Bevilacqua nel 1925 a darle degna sepoltura nel cimitero «Voltaire di Suresnes», alle porte della sua amata Parigi.” (Tazinelli, 2019)[7]. A sua interpretação de Bianca Capello seria copiada e reproduzida por artistas e amadores como Sophia, que assina a cópia adquirida por Ana Gama e que agora se partilha.
Peculiar associação do universo feminino na junção destas quatro mulheres.
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[1] Região do Lácio, província de Roma.
[2] Georges-Eugéne Haussemann (1809-1881).
[3] Album Marini , Tomo 2, 1896. Publicação (14 vol.) com biografias ilustradas de personagens de grande relevo entre 1894 e1925.
[4] Fernández, Maria Ángeles Lopes (1991) – Woman, Art and Power, and other essays. Disponível em: https://revistas.ucm.es/index.php/ARIS/article/view/ARIS9192110205A/6040
[5] Le Figaro, 30 abril de 1898 – Apud: A. D. (2018) – Juana Romani e Ângelo Mariani. Disponível em: https://angelomariani.wordpress.com/2018/02/03/juana-romani-et-angelo-mariani/
[6] De acordo com estudos forenses e toxicológicos realizados em 2006, por especialistas da Universidade de Florença.
[7] Tazinelli, Silvano di (2019) – Juana Romani. La musa ritrovata. Centro Documentazione e Studi Cassinati
Bibliografia
LAGRANGE, Marion (2017) – Juana Romani (1867-1923), élève de…, maîtresse de… La parentèle sous la plume des critiques d’art. In Atas do Colóquio: Parent-elles,Copagne de, Fille de, Soeur de… Les femmes Artistes au risque de la Parentàle. Co-Edição de Archives of Women Artists Reserch and Exihibitions CRIHAM, Université de Poitiers , Musée Saint-Croix, Poitiers. Disponível em: https://awarewomenartists.com/publications/juana-romani-1867-1923-pupil-of-mistress-of-family-relationships-as-commented-by-art-critics [Consultado em dezembro de 2020 / janeiro de 2021].
LÓPEZ Fernández, Mª Ángeles. (1991) – “Women, Art and Power, and Other Essays.” In Arte, Individuo Y Sociedad. Nº 4. p. 205. Disponível em https://revistas.ucm.es/index.php/ARIS/article/view/ARIS9192110205A. [Consultado em dezembro de 2020 / janeiro de 2021].
SOUSA, Gonçalo de Vasconcelos e (2008) – Joias, Retratos e a Iconografia das Elites Portuguesas. In Revista de História da Arte, nº 5; Instituto de História da Arte – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas/UNL pp.259-271. Disponível em: https://run.unl.pt/bitstream/10362/13242/1/ART_16_Varia_3.pdf [Consultado em dezembro de 2020 / janeiro de 2021].
TAZINELLI, Silvano di (2019) – Juana Romani. La musa ritrovata. Centro Documentazione e Studi Cassinati. Disponível em: https://www.cdsconlus.it/index.php/2020/02/09/juana-romani-la-musa-ritrovata/ [Consultado em dezembro de 2020 / janeiro de 2021].
VÁRIOS (2017) – Juana Romani. La petit Italiene. Da modella a prittrice nella Parigi fin-de-Siècle. (Catálogo). Velletri, «L’ERMA» di BRETSCHNEIDER. Disponível em: https://www.academia.edu/35632658/Juana_Romani_La_petite_italienne_Da_modella_a_pittrice_nella_parigi_fin_de_si%C3%A8cle [Consultado em dezembro de 2020 / janeiro de 2021].
Nota de agradecimento:
Ao Dr. Tiago Araújo pelo importante contributo dado na prestação da informação relativa a Juana Romani, autora do original que esta cópia reproduz.
Georgina Pessoa | fevereiro de 2021
Théodora – Bianca Capello
Texto de Gabriele Romani